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1964 - 40 ANOS DE GOLPE - 2004
Em 25 de março de 1964, a Revolta dos Marinheiros no Rio acentuou a polarização política no país
O dia em que a marujada se rebelou e foi às ruas
SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL
Quando saiu de casa, naquela
quarta-feira, dia 25 de março de
1964, o marinheiro Pedro Viegas
sabia muito bem para onde iria: o
palácio do Aço, sede do Sindicato
dos Metalúrgicos, no Rio de Janeiro. Era ali que se reuniam a diretoria da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do
Brasil e mais de mil pessoas.
Entre elas estariam o mitológico
João Cândido, o "almirante negro", e o presidente da entidade, o
Cabo Anselmo, na verdade o marinheiro de primeira classe José
Anselmo dos Santos. O objetivo
inicial da marujada era comemorar o segundo ano de existência
da entidade, e, como repórter do
jornal da associação, "A Tribuna
do Mar", Viegas não podia nem
queria perder nenhum detalhe.
Primeiro, pela presença de João
Cândido. Então aos 84 anos, reverenciado pela tropa apesar de expulso da Marinha, ele tinha sido o
líder da Revolta da Chibata (1910),
quando os marujos tomaram a
baía de Guanabara e se rebelaram
contra os castigos corporais que
lhes eram impostos.
Depois, por Cabo Anselmo, aos
23 anos o segundo presidente da
associação (cuja diretoria comungava com o Partido Comunista),
um orador empolgado que era garantia de bons discursos. Horas
antes da festa, porém, o Ministério da Marinha, que não reconhecia a entidade, mandou prender
os seus diretores.
Logo a comemoração viraria
uma assembléia permanente.
"Mas ainda não havia um sentimento de revolta", lembra hoje o
ex-marinheiro e jornalista Pedro
Viegas, 66, que reconta o episódio
no livro "Trajetória Rebelde"
(Editora Cortez), a sair neste mês.
"Nós ainda estávamos dispostos a
negociar, ver onde ia dar."
(Cinco anos mais tarde, detido,
Viegas comandaria da Penitenciária Lemos de Brito, no Rio, a
"Operação Liberdade", que libertou presos políticos, a maioria ex-marinheiros, numa ação cinematográfica que culminou na fuga
em um Aero-Willis e foi executada enquanto outros detentos, coniventes, batiam suas canecas nas
barras das celas e cantavam: "O
mar se agitou! O mar não está para peixe! Bate firme, marujada!".)
O tal sentimento de revolta viria
com um discurso inflamado de
Anselmo, planejado no escritório
de Carlos Marighella (1911-1969,
que depois criaria a Aliança Libertadora Nacional), dirigido ao presidente João Goulart e atacando
os militares que conspiravam:
"Quem (...) tenta subverter a ordem são os aliados das forças
ocultas, que levaram um presidente ao suicídio, outro à renúncia e tentaram impedir a posse de
Jango e agora impedem a realização das reformas de base".
A polarização política dava o
tom naquele março de 1964. Dias
antes, o Rio de Janeiro recebera o
Comício da Central do Brasil (dia
13), em que o presidente Jango
havia "se definido pela esquerda",
segundo o brasilianista Thomas
Skidmore. Logo depois, a reação
da direita, que colocou milhares
de pessoas nas ruas de São Paulo
(dia 19) seguindo a Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
A relação entre a soldadesca e a
oficialidade refletia essa polarização. "Soldados, cabos, sargentos,
cujas associações estavam de uma
maneira ou de outra sob influência da esquerda, e os altos oficiais
tinham entrado em rota de colisão já havia algum tempo", afirma
o historiador Flávio Luís Rodrigues, autor de "Vozes do Mar - O
Movimento dos Marinheiros e o
Golpe de 64" (Cortez, 2004).
Pelo menos um antecedente
ajudou a acirrar os ânimos. No
ano anterior, cerca de 500 sargentos ocuparam centros administrativos de Brasília em protesto à
decisão do STF de negar a posse
do mandato aos que entre eles tinham sido eleitos para a Câmara
dos Deputados em 1962, o que ficou conhecido como a Revolta
dos Sargentos.
Agora, o episódio no Sindicato
dos Metalúrgicos já era tratado
como Revolta dos Marinheiros.
Como agravante, parte dos fuzileiros navais enviados à sede para
prender os companheiros sublevados colocou as armas no chão e
aderiu. O comando da Marinha
não iria aceitar aquela demonstração pública de indisciplina.
Ironicamente, o próprio João
Cândido criticaria depois a "segunda rebelião". Conforme conta
seu filho caçula, Adalberto do
Nascimento Cândido, 65, que a
Folha localizou vivendo em São
João do Meriti, no Rio, o pai saiu
da reunião dizendo que "marinheiro faz revolta é no mar". O
"almirante negro" morreria em
1969, em decorrência de câncer,
em paz com o regime militar e
"ainda adorando a Marinha acima de tudo", segundo Adalberto.
Quando a revolta eclodiu, João
Goulart passava o feriado da Semana Santa em sua fazenda em
São Borja (RS). A maneira como o
presidente lidaria com o problema nos cinco dias seguintes ajudaria sua caminhada rumo ao cadafalso no dia 31.
Primeiro, Jango mandou oficiais de seu Gabinete Militar negociarem com Anselmo. Então,
os marinheiros sublevados foram
presos -e levados a quartéis do
Exército, não da Marinha, para
evitar confrontos-, mas soltos
em seguida. Saíram em passeata
comemorativa carregando dois
almirantes de esquerda nos ombros, conforme relata Elio Gaspari em "A Ditadura Envergonhada" (Cia. das Letras, 2002).
Os atos foram considerados humilhantes pela oficialidade, que
reagiu com a demissão do ministro da Marinha, Silvio Mota, logo
substituído por ordem de Jango
por um almirante próximo do
PCB. A gota d'água viria indiretamente por obra de outros soldados, suboficiais e sargentos das
Forças Armadas, reunidos no Automóvel Clube, na Cinelândia.
Estamos no dia 30 de março.
No salão transformado em auditório, numa noite de muito calor, soldados rebelados das três
Forças e simpatizantes em número próximo de 2.000 ouvem discursos cada vez mais duros de líderes das associações, a maioria
pregando desobediência militar.
Poucos minutos depois das 22h,
João Goulart entra no salão sob
aplausos. Leva no bolso um discurso escrito em parte pelo histórico líder comunista Luis Carlos
Prestes (1898-1990) e muita
apreensão de seus assessores, parte dos quais contrária a sua decisão de ir ao evento daquela noite.
"Quem fala em disciplina, senhores sargentos, quem alardeia,
quem procura intrigar o presidente da República com as Forças
Armadas em nome da disciplina
são os mesmos que, em 61, em nome da disciplina e da pretensa ordem e legalidade que eles diziam
defender prenderam dezenas de
sargentos", disparou.
"Na verdade, nós temíamos que
ele não aparecesse naquela noite e
que, caso aparecesse, não discursasse", lembra Pedro Viegas. Pois
João Goulart não só foi como discursou -seria aquele seu último
discurso como presidente.
Ainda hoje, muita polêmica envolve os dias que se sucederam
entre 25 e 30 de março. A primeira
vem da tese segundo a qual a Revolta dos Marinheiros teria sido
inflada por agentes da direita infiltrados, na figura do Cabo Anselmo, para apressar a queda de
Jango. "Não acredito que Anselmo fosse um traidor em 1964",
afirma Pedro Viegas. "Ele só passou para o lado de lá em 1971."
De fato, após liderar a revolta,
José Anselmo dos Santos cairia na
clandestinidade com o golpe e militaria na VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Preso pelo
Dops em 1971, mudaria de lado e
passaria a trabalhar para o regime, entregando antigos companheiros para a repressão militar.
A outra vem da hipótese de que
somente depois da visita ao Automóvel Clube é que Jango selaria
seu destino de presidente deposto, por ter compactuado com a indisciplina militar, o que engrossou as fileiras dos militares golpistas. "O golpe estava no ar e viria
de qualquer jeito, de um lado ou
de outro", diz o historiador Marco Antonio Villa, autor de "Jango
- Um Perfil" (Globo, 2004).
O mesmo relata Gaspari em seu
livro, segundo o qual, antes mesmo de Jango discursar, o golpe já
estava em marcha. Tanto que, horas antes da fala presidencial, a
Casa Branca recebia um telegrama do consulado americano em
São Paulo, que informava: "Duas
fontes ativas do movimento contra Goulart dizem que o golpe
contra o governo do Brasil deverá
vir nas próximas 48 horas".
Viria mesmo. No dia seguinte,
31 de março de 1964.
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