São Paulo, quarta-feira, 25 de julho de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARAGUAIA, 27 ANOS

Exército monitora até hoje guias que usou na guerrilha

Militares distribuem cestas básicas e práticas assistencialistas; pedem em troca silêncio

ANDRÉA MICHAEL
ENVIADA ESPECIAL A MARABÁ

Passados 27 anos do final da guerrilha do Araguaia, o sul do Pará continua sob o monitoramento do Exército. Militares à paisana foram flagrados na região há 12 dias distribuindo alimentos a ex-colaboradores.
Em depoimento a procuradores, alguns desses ex-informantes do Exército disseram ter recebido ordens para guardar silêncio sobre tudo que diga respeito ao confronto entre militares e militantes do PC do B na região do Bico do Papagaio, entre 1972 e 1974.
Os procuradores abriram no início deste mês inquérito civil para tentar localizar as ossadas dos guerrilheiros mortos no embate. E encontraram até uma casa que serve de base de apoio aos militares que monitoram os remanescentes da guerrilha.
Em Brejo Grande, a 100 quilômetros de Marabá, os procuradores Ubiratan Cazetta, de Belém, e Marlon Weichert, de São Paulo, presenciaram o momento em que três integrantes da operação de monitoramento do Exército chegaram à casa de um ex-colaborador para entregar alimentos.
O beneficiário seria José Veloso de Andrade, que sabia antecipadamente o dia -13 de julho- e a hora -às 10h- de receber o "agrado". O comandante da expedição assistencialista foi identificado por Andrade apenas como "doutor Bezerra".
Ao serem abordados pelos procuradores, Bezerra e seus dois colegas se apresentaram como jornalistas e bateram em retirada, sem deixar o "agrado". A caminhonete que dirigiam, uma Mitsubishi modelo L200, tinha chapa fria. A identificação, na verdade, pertence a um Fusca.

Proibido
José Veloso de Andrade, hoje com 73 anos, guiou o Exército pelas matas da região. E também comandava o restaurante da base militar de Bacaba, próximo a Brejo Grande. "Eles [militares" me proíbem de dar entrevista", disse à Folha. "Sabe o que é? Eu não tenho medo de ninguém me matar, de me bater. Eu tenho muito mais medo de repreensão, de ser chamado a atenção, do que tudo."
Em visita anterior dos militares, Veloso de Andrade foi presenteado com um prumo (ferramenta utilizada na construção civil).
Negando-se a falar sobre a guerrilha, o ex-guia descreveu o local onde funcionaria o escritório dos militares em Marabá. Os procuradores foram impedidos de se aproximar do imóvel. Um Corsa branco cercou o carro em que estavam, forçando-os a ir embora.
A Folha esteve no local, situado na quadra três da Folha 17 [nome de uma das 33 subdivisões do bairro de Nova Marabá que tem o formato de uma castanheira". O imóvel não está registrado no cartório da cidade. Pertence à Eletronorte. A empresa possui três vilas de operários no município. Duas são habitadas por funcionários. A terceira, onde se localiza a base dos militares apontada por Veloso de Andrade, foi cedida ao Ministério do Exército em regime de comodato desde 1991.
Trata-se de uma casa com muros altos, antena parabólica e de rádio. No dia 21 de julho, tocada a campainha, abriu-se apenas um pequeno quadrado rasgado na porta de metal.
Um senhor que se identificou como Fabio, de quem só se via o olho direito, disse que o responsável pelo imóvel não estava. Na vizinhança, a casa é conhecida e descrita como uma "república de gente do Exército".
"Não podemos aceitar que o Estado faça um discurso de transparência, de colaboração, e depois venha esse outro Estado, o militar, manter o silêncio das pessoas", afirma o procurador Guilherme Schelb, de Brasília.
"Nada justifica esse manto de proteção. Há um clima de medo, que começou no passado e é mantido até hoje por essa presença [de militares"", diz o procurador Ubiratan Cazetta.

Presente 38
Há evidências de que existe também distribuição de revólveres ca libre 38 a ex-colaboradores do Exército. Pedro Ribeiro Alves, o Pedro Galego, teve sua arma apreendida pelo Ministério Público, na presença da polícia, no último dia 19 de julho. Quase acabou preso quando tentava fugir dos procuradores. Ele contou em depoimento que ganhou revólver e porte de arma federal em 1997 de um militar chamado Flavio, em São Geraldo do Araguaia (TO).
Galego afirma que "o dr. Flavio disse para o declarante ficar de bico calado em relação aos fatos envolvendo a guerrilha do Araguaia, e também vigiar a região, prestar atenção se aparecesse alguém estranho na região, devendo comunicar ao dr. Flavio qualquer acontecimento estranho".
Ele disse ainda que já ganhou cesta básica de militares e que, em junho, recebeu a visita de uma pessoa chamada dr. Adriano, de Marabá, de quem ouviu a ordem para calar sobre a guerrilha.
Adriano e Flavio também são citados pelo ex-guia Veloso de Andrade como "pessoas importantes". O último, de Brasília, seria o antecessor de Bezerra, atual titular da operação de monitoramento militar na região.
Há dez dias, os procuradores Schelb, Cazetta e Weichert se reuniram em Brasília com o general Alberto Cardoso, chefe do gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. O quarto integrante do grupo de procuradores, Felício Pontes, de Belém, estava em campo colhendo depoimentos.
Eles pediram a abertura dos arquivos sobre a guerrilha do Araguaia. Aguardam resposta.

Catarata
Outro colaborador do Exército conhecido em Brejo Grande é Rufino Torres, 68 anos, que abrigou soldados em sua casa durante os anos da guerrilha. O contato de Torres com os militares também se dá na casa da Folha 17 em Marabá, que ele chama de escritório do "pessoal da inteligência".
Torres disse à Folha que o serviço de apoio aos colaboradores antes funcionava na casa de número 70 da vila militar de Marabá. Naquele local, ele pediu socorro para operar a filha, Maria da Paz, de catarata. Conseguiu.
"Ficou pra gente conversar com eles", disse Torres, para explicar por que procura os militares quando visita Marabá. "Esfriou [a região da guerrilha", mas eles [militares" ficam sempre visitando."
Mais esquivo, o ex-guia Raimundo Negro, 63 anos, nega ter orientado os militares no mato. Faz as contas rapidamente para dizer que chegou à região somente em 1980. No site do governo do Pará, no entanto, Negro é apontado como um dos desbravadores do sul paraense, a partir de 1958.



Texto Anterior: Elio Gaspari: "Vendeste o carro para comprar gasolina"
Próximo Texto: Outro lado: Em nota, Exército admite atividades sociais no Pará
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.