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ARAGUAIA, 27 ANOS
Exército monitora até hoje guias que usou na guerrilha
Militares distribuem cestas básicas e práticas assistencialistas; pedem em troca silêncio
ANDRÉA MICHAEL
ENVIADA ESPECIAL A MARABÁ
Passados 27 anos do final da
guerrilha do Araguaia, o sul do
Pará continua sob o monitoramento do Exército. Militares à
paisana foram flagrados na região
há 12 dias distribuindo alimentos
a ex-colaboradores.
Em depoimento a procuradores, alguns desses ex-informantes
do Exército disseram ter recebido
ordens para guardar silêncio sobre tudo que diga respeito ao confronto entre militares e militantes
do PC do B na região do Bico do
Papagaio, entre 1972 e 1974.
Os procuradores abriram no
início deste mês inquérito civil
para tentar localizar as ossadas
dos guerrilheiros mortos no embate. E encontraram até uma casa
que serve de base de apoio aos militares que monitoram os remanescentes da guerrilha.
Em Brejo Grande, a 100 quilômetros de Marabá, os procuradores Ubiratan Cazetta, de Belém, e
Marlon Weichert, de São Paulo,
presenciaram o momento em que
três integrantes da operação de
monitoramento do Exército chegaram à casa de um ex-colaborador para entregar alimentos.
O beneficiário seria José Veloso
de Andrade, que sabia antecipadamente o dia -13 de julho- e a
hora -às 10h- de receber o
"agrado". O comandante da expedição assistencialista foi identificado por Andrade apenas como
"doutor Bezerra".
Ao serem abordados pelos procuradores, Bezerra e seus dois colegas se apresentaram como jornalistas e bateram em retirada,
sem deixar o "agrado". A caminhonete que dirigiam, uma Mitsubishi modelo L200, tinha chapa
fria. A identificação, na verdade,
pertence a um Fusca.
Proibido
José Veloso de Andrade, hoje
com 73 anos, guiou o Exército pelas matas da região. E também comandava o restaurante da base
militar de Bacaba, próximo a Brejo Grande. "Eles [militares" me
proíbem de dar entrevista", disse
à Folha. "Sabe o que é? Eu não tenho medo de ninguém me matar,
de me bater. Eu tenho muito mais
medo de repreensão, de ser chamado a atenção, do que tudo."
Em visita anterior dos militares,
Veloso de Andrade foi presenteado com um prumo (ferramenta
utilizada na construção civil).
Negando-se a falar sobre a guerrilha, o ex-guia descreveu o local
onde funcionaria o escritório dos
militares em Marabá. Os procuradores foram impedidos de se
aproximar do imóvel. Um Corsa
branco cercou o carro em que estavam, forçando-os a ir embora.
A Folha esteve no local, situado
na quadra três da Folha 17 [nome
de uma das 33 subdivisões do
bairro de Nova Marabá que tem o
formato de uma castanheira". O
imóvel não está registrado no cartório da cidade. Pertence à Eletronorte. A empresa possui três vilas
de operários no município. Duas
são habitadas por funcionários. A
terceira, onde se localiza a base
dos militares apontada por Veloso de Andrade, foi cedida ao Ministério do Exército em regime de
comodato desde 1991.
Trata-se de uma casa com muros altos, antena parabólica e de
rádio. No dia 21 de julho, tocada a
campainha, abriu-se apenas um
pequeno quadrado rasgado na
porta de metal.
Um senhor que se identificou
como Fabio, de quem só se via o
olho direito, disse que o responsável pelo imóvel não estava. Na vizinhança, a casa é conhecida e
descrita como uma "república de
gente do Exército".
"Não podemos aceitar que o Estado faça um discurso de transparência, de colaboração, e depois
venha esse outro Estado, o militar, manter o silêncio das pessoas", afirma o procurador Guilherme Schelb, de Brasília.
"Nada justifica esse manto de
proteção. Há um clima de medo,
que começou no passado e é mantido até hoje por essa presença [de
militares"", diz o procurador Ubiratan Cazetta.
Presente 38
Há evidências de que existe
também distribuição de revólveres ca libre 38 a ex-colaboradores
do Exército. Pedro Ribeiro Alves,
o Pedro Galego, teve sua arma
apreendida pelo Ministério Público, na presença da polícia, no último dia 19 de julho. Quase acabou
preso quando tentava fugir dos
procuradores. Ele contou em depoimento que ganhou revólver e
porte de arma federal em 1997 de
um militar chamado Flavio, em
São Geraldo do Araguaia (TO).
Galego afirma que "o dr. Flavio
disse para o declarante ficar de bico calado em relação aos fatos envolvendo a guerrilha do Araguaia,
e também vigiar a região, prestar
atenção se aparecesse alguém estranho na região, devendo comunicar ao dr. Flavio qualquer acontecimento estranho".
Ele disse ainda que já ganhou
cesta básica de militares e que, em
junho, recebeu a visita de uma
pessoa chamada dr. Adriano, de
Marabá, de quem ouviu a ordem
para calar sobre a guerrilha.
Adriano e Flavio também são
citados pelo ex-guia Veloso de
Andrade como "pessoas importantes". O último, de Brasília, seria o antecessor de Bezerra, atual
titular da operação de monitoramento militar na região.
Há dez dias, os procuradores
Schelb, Cazetta e Weichert se reuniram em Brasília com o general
Alberto Cardoso, chefe do gabinete de Segurança Institucional
da Presidência da República. O
quarto integrante do grupo de
procuradores, Felício Pontes, de
Belém, estava em campo colhendo depoimentos.
Eles pediram a abertura dos arquivos sobre a guerrilha do Araguaia. Aguardam resposta.
Catarata
Outro colaborador do Exército
conhecido em Brejo Grande é Rufino Torres, 68 anos, que abrigou
soldados em sua casa durante os
anos da guerrilha. O contato de
Torres com os militares também
se dá na casa da Folha 17 em Marabá, que ele chama de escritório
do "pessoal da inteligência".
Torres disse à Folha que o serviço de apoio aos colaboradores antes funcionava na casa de número
70 da vila militar de Marabá. Naquele local, ele pediu socorro para
operar a filha, Maria da Paz, de catarata. Conseguiu.
"Ficou pra gente conversar com
eles", disse Torres, para explicar
por que procura os militares
quando visita Marabá. "Esfriou [a
região da guerrilha", mas eles [militares" ficam sempre visitando."
Mais esquivo, o ex-guia Raimundo Negro, 63 anos, nega ter
orientado os militares no mato.
Faz as contas rapidamente para
dizer que chegou à região somente em 1980. No site do governo do
Pará, no entanto, Negro é apontado como um dos desbravadores
do sul paraense, a partir de 1958.
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