São Paulo, domingo, 25 de julho de 2004

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NO PLANALTO

Um descalabro que sobrevive a cinco presidentes

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O que faz do pagamento de impostos um suplício é a certeza de que do outro lado do balcão há um impostor. Aqui vai mais uma evidência de que governos, estróinas pertinazes, pensam que dinheiro é grátis. Não sabem o preço do suor. Pede-se licença ao leitor para narrar um descalabro de azedar o domingo. A encrenca cruzou quatro Presidências: Sarney, Collor, Itamar e FHC. Pulsa agora sob Lula. Ameaça aliviar a bolsa da Viúva em R$ 1,810 bilhão. Aconteceu assim: 1) em fevereiro de 1988 (Sarney), Brasília desapropriou um porto no Estado do Pará. Fica na ilha de Caratateus, 40 km ao norte de Belém. Alegou-se que era "estratégico". Embarcaria toda a soja das regiões Centro-Oeste e Norte; 2) dona do terminal portuário desapropriado, a empresa Sotave Amazônia tornou-se credora de uma indenização. A moeda de então era o cruzeiro. Ao transpor o valor do porto para reais, o governo produziu avaliações díspares; 3) para a Advocacia da União, o terminal vale R$ 70,3 milhões. Para a Cia. Docas do Pará, estatal vinculada ao Ministério dos Transportes, o preço alça à casa dos R$ 200 milhões; 4) em 1990 (Collor), como o governo tardava em lhe pagar, a Sotave propôs a conversão de seus créditos em títulos públicos ("moedas de privatização"). Endividada na praça, pediu que parte do papelório fosse entregue a seus credores; 5) os papéis começaram a ser liberados em 1991 (Collor). Súbito, um dos credores da Sotave melou o acerto. Chama-se IFC (International Finance Corporation). É o braço financeiro do Banco Mundial. Fizera empréstimos à Sotave. Recebera em hipoteca o porto desapropriado. Invocou preferência sobre os demais credores. Para evitar problemas, o Tesouro suspendeu os pagamentos; 6) àquela altura, a Sotave já havia arrancado do erário, segundo a Advocacia da União, R$ 410 milhões. De credora, passara a devedora. Teria de restituir à Viúva R$ 339,7 milhões; 7) em setembro de 1994 (Itamar Franco), Brasília anulou a desapropriação. Tido como "estratégico" em 1988, o porto fora abandonado. Convertera-se num mico. Mas governos, como bêbados, são imprevisíveis. E o Estado restabeleceria a expropriação em 1997 (FHC), por meio de decreto presidencial; 8) em 1998 (ainda FHC), a Justiça Federal do Pará mandou atualizar os cálculos do suposto crédito remanescente da Sotave. A empresa estimou que a Viúva ainda lhe devia R$ 595 milhões. Em sucessivos recursos judiciais, o governo tenta esquivar-se do pagamento; 9) em 31 de dezembro de 2002, último dia da era tucana, FHC transferiu a gestão do porto à Cia. Docas do Pará, a estatal vinculada ao Ministério dos Transportes. O terminal continuava abandonado. Equipamentos como esteiras rolantes e guindastes haviam sido roubados. Traficantes de drogas serviam-se da plataforma de embarque; 10) o cenário de terra arrasada se estendia aos tribunais. O governo amargava sucessivas derrotas. Foi batido no TRF-1 (Tribunal Regional Federal) e no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Julgou-se que os recursos contra o pagamento da indenização eram incabíveis; 11) em 2003 (Lula), a Advocacia da União e o Ministério Público protocolaram novos recursos no TRF. O procurador da República Augusto Aras pede o abatimento das parcelas já pagas pela União. "O Ministério Público só pode atuar como parecerista", diz Sant'ana Pereira, advogado da Sotave. "Não tem poder para agravar coisa nenhuma"; 12) em abril passado, a Justiça Federal do Pará atualizou os cálculos. Injetou na conta da desapropriação "juros compensatórios", "juros moratórios" e "juros de mora sobre os compensatórios". Concluiu que Brasília ainda deve à Sotave a bagatela de R$ 1,4 bilhão; 13) considerando-se os R$ 410 milhões que o governo diz já ter desembolsado, a conta vai a R$ 1,81 bilhão. "R$ 800 milhões voltarão aos cofres públicos", diz Amaury Mattos, advogado da Sotave e de um grupo de credores da empresa. "Referem-se a dívidas com o fisco, com a Previdência e com organismos estatais"; 13) "Isso é maluquice", ataca Nelson Simas, diretor de Gestão Portuária da Cia. Docas do Pará. "Se fosse construído hoje, o porto da Sotave custaria no máximo R$ 200 milhões." Projeta-se a construção de um novo porto no Pará. Será erigido no meio do oceano. Terá estrutura bem maior que a do terminal da Sopave. Receberá "os maiores navios cargueiros do mundo. Custará R$ 400 milhões"; 14) em 18 de junho de 2004, o ministro Alfredo Nascimento (Transportes) inaugurou, finalmente, o terminal portuário da Sotave. Eram decorridos 16 anos desde a desapropriação. "Nossa obrigação é pôr esse porto para funcionar para funcionar", diz Paulo de Tarso Carneiro, diretor de Transportes Aguaviários da pasta dos Transportes. "Ainda neste ano, devemos fazer uma licitação, para transferir a operação dos terminais para empresas privadas"; 15) virou fumaça o sonho que havia justificado a aventura de 1988. Não há notícia de um único grão de soja que tenha sido embarcado no porto da Sotave; 16) só há duas semanas a Receita Federal autorizou o funcionamento efetivo do porto. Realizaram-se até aqui, em caráter experimental, três carregamentos de madeira rumo à Europa; 16) como se vê, o brasileiro é mesmo um sujeito desafortunado. Como contribuinte, paga para que tecnocratas idiotas tenham idéias idiotas que, adotadas por autoridades idiotas, resultam em prejuízos que fazem dos que os financiam perfeitos idiotas.
 
PS.: a partir desta segunda-feira, o repórter sairá em férias. Voltará à trincheira em 30 dias.


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