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ENTREVISTA DA 2ª
JOAQUIM BARBOSA
Enganou-se quem esperava um negro submisso no STF
Ministro nega que seja "encrenqueiro", mas diz que não se cala quando vê algo errado
FREDERICO VASCONCELOS
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA
"ENGANARAM-SE os que pensavam
que o Supremo Tribunal Federal
iria ter um negro submisso, subserviente", diz o ministro Joaquim
Barbosa, ao comentar os desentendimentos com alguns de seus pares -como Marco Aurélio, Gilmar
Mendes e Eros Grau. Ele atribui os atritos à defesa
que faz de "princípios caros à sociedade", como o
combate à corrupção. Barbosa entrou em choque
com ministros tidos como "liberais" em julgamentos
da Operação Anaconda. Ficou conhecido popularmente como relator do inquérito do mensalão e recentemente discutiu com Eros Grau sobre a liberação de um preso da Operação Satiagraha.
Joaquim Barbosa nega que
seja "encrenqueiro" e diz não se
sentir isolado no tribunal, onde
"não costuma silenciar quando
presencia algo errado".
Ele critica, por exemplo, os
advogados de "certas elites"
que monopolizam a agenda do
Judiciário -inclusive no Supremo-, marcando audiências
para pedir que seus processos
sejam julgados com prioridade,
na frente de outros que entraram na Corte há mais tempo.
Barbosa recebeu a Folha
quarta-feira, em seu gabinete,
onde concedeu entrevista em
pé, durante cerca de uma hora.
Ele sofre de dores crônicas na
coluna, incômodo que se agrava quando fica sentado nas cinco sessões semanais na Corte.
FOLHA - A mídia o aponta como o
ministro que mais se desentende
com os colegas. O sr. é uma pessoa
de temperamento difícil?
JOAQUIM BARBOSA - Engano pensar que sou uma pessoa que
tem dificuldade de relacionamento, uma pessoa difícil. Eu
sou uma pessoa altiva, independente e que diz tudo que
quer. Se enganaram os que
pensavam que, com a minha
chegada ao Supremo Tribunal
Federal, a Corte iria ter um negro submisso.
Isso eu não sou e nunca fui
desde a mais tenra idade. E tenho certeza de que é isso que
desagrada a tanta gente. No
Brasil, o que as pessoas esperam de um negro é exatamente
esse comportamento subserviente, submisso. Isso eu combato com todas as armas.
FOLHA - Gilmar Mendes chegou a
dizer que o sr. "tem complexo". A
ministra Carmen Lúcia insinuou que
haveria um "salto social", com sua
evidência no caso do mensalão. Como o sr. recebe esses comentários?
BARBOSA - A imprensa se esquece de dizer quais foram as
razões pelas quais eu tive certos
desentendimentos. Quase
sempre foram desentendimentos nos quais eu estava defendendo princípios caros à sociedade brasileira, como o combate à corrupção no próprio Poder Judiciário. Sem aquela briga com o ministro Marco Aurélio, o caso Anaconda não teria
condenação e cumprimento de
penas pelos réus.
FOLHA - No julgamento de uma
ação da Anaconda houve o comentário de que o sr. teria "complexo"...
BARBOSA - Achei apropriado
naquele momento dar uma resposta dura. Falaram que eu sou
encrenqueiro. Eu tenho amigos
espalhados pelo Brasil e pelo
mundo inteiro. São pessoas decentes. E eu não costumo silenciar quando presencio algo de
errado, ainda que no âmbito do
tribunal ao qual eu pertenço.
FOLHA - O sr. se sente isolado no
Supremo?
BARBOSA - Nem um pouco. Eu
tenho meu leque de amizades,
que são pessoas que têm afinidades comigo, com aquilo que
eu gosto, que não necessariamente coincide com o gosto da
maioria do tribunal. Mas tenho
boa relação com ministros.
FOLHA - Uma crítica recorrente é
que o Supremo favorece as elites.
Como o sr. vê essa observação?
BARBOSA - Eu ainda não amadureci a minha reflexão sobre
isso. Mas há uma coisa que me
perturba, que me deixa desconfortável aqui no tribunal e na
Justiça brasileira como um todo. É o fato de que certas elites,
certas categorias monopolizam, sim, a agenda dos tribunais. Isso não quer dizer que eu
esteja de acordo com a frase de
que o tribunal favorece as elites. Monopolizam a agenda.
FOLHA - Como isso ocorre?
BARBOSA - Nós temos na Justiça brasileira o sistema de preferência, tido como a coisa mais
natural do mundo. O advogado
pede audiência, chega aqui e
pede uma preferência para julgar o caso dele. O que é essa
preferência? Na maioria dos
casos, é passar o caso dele na
frente de outros que deram entrada no tribunal há mais tempo. Se o juiz não estiver atento a
isso, só julgará casos de interesse de certas elites, sim. Quem é
recebido nos tribunais pelos
juízes são os representantes
das classes mais bem situadas.
Eu não posso avalizar inteiramente essa frase [de que o Supremo favorece as elites], mas
acho que um país em que a Justiça está completamente abarrotada tem que ter atenção
muito grande para esse perigo
de que a agenda dos tribunais
seja monopolizada por certos
segmentos sociais. Basta prestar a atenção, durante cada ano,
no tempo que o STF gasta julgando questões de interesse
corporativo. É enorme.
FOLHA - O sr. costuma receber advogados em seu gabinete?
BARBOSA - Recebo, mas nenhum advogado, por mais importante que ele seja, monopoliza o meu gabinete [o ministro
informa que concedeu 244 audiências, em 2006 e 2007].
FOLHA - Sua decisão de quebrar o
sigilo do inquérito do mensalão contribuiu para a abertura do Supremo
à sociedade. Quais os aspectos positivos e negativos dessa exposição?
BARBOSA - Eu acho que o lado
bom é o pedagógico. Aproxima
o tribunal da sociedade. Quebra
com uma tradição tipicamente
brasileira, ainda forte, de o juiz
estar distante do cidadão. O tribunal entra nos lares dos brasileiros. As questões importantes
da cidadania são debatidas, são
absorvidas pelo cidadão. Acho
isso muito positivo. O lado negativo disso é que essa superexposição traz uma carga de pressão muito grande em cima do
tribunal. Essa hiper-exposição
atrai cada vez mais demandas
para o Supremo. Uma tendência natural de outros poderes e
de segmentos da sociedade é
pensar que tudo pode ser resolvido no Supremo. Não é tão fácil assim vir até o Supremo, e é
extremamente caro.
FOLHA - Diante das decisões recentes do tribunal, alguns juízes dizem
que o Supremo está se distanciando
da sociedade, do mundo real.
BARBOSA - Teoricamente, acho
que isso possa existir. Não quero falar sobre decisões. Em tese, o juiz não pode se desgrudar
da sociedade. Ele não pode desprezar os valores mais caros da
sociedade na qual opera. Seria
suprema arrogância -e isso eu
noto em alguns juízes brasileiros- achar que não interessa o
que a sociedade pensa sobre determinadas decisões. O juiz é
fruto do seu meio. Seria o supra-sumo da arrogância entender que o juiz poderia ter uma
escala de valores que não leve
em conta o sentimento da sociedade sobre questões que lhe
são trazidas para decidir. Em
um sistema judiciário que não
leva em consideração o sentimento da sociedade sobre determinadas questões, a tendência é ele perder credibilidade e
se transformar em monstrengo
inútil, do ponto de vista institucional, a médio ou longo prazo.
FOLHA - O Supremo carece de especialistas em direito penal?
BARBOSA - Eu discordo. O Supremo não precisa de especialistas em direito penal. É verdade que na atual composição não
há especialistas em direito penal. Mas uma pessoa com uma
boa formação em direito público, com uma boa formação humanística, uma boa visão de
mundo, que não seja paroquial,
é isso que se espera do membro
de uma Corte Suprema e não
uma especialização exacerbada
nesta ou naquela matéria. O
que se espera é, sobretudo, prudência. Uma clara visão da sociedade.
FOLHA - Quantos membros do Supremo já interrogaram réus?
BARBOSA - Isso é irrelevante.
Eu presido quatro grandes processos criminais, jamais vistos
na história do tribunal. Eu não
vou interrogar ninguém. Eu delego. Eu não preciso interrogar.
A lei me dá esse poder. Não é
uma corte para resolver questões pontuais. É um tribunal
que julga casos com profunda
repercussão na sociedade. Aqui
não se cuida do varejo. Já interroguei réus. Fui procurador da
República por 19 anos. Minha
especialização é direito público, mas isso é bobagem, não
tem a menor relevância.
FOLHA - Em que medida o foro privilegiado dificulta uma avaliação
mais precisa do Supremo?
BARBOSA - Eu acho o foro privilegiado nefasto. O foro privilegiado e outras medidas são processos de racionalização da impunidade. Já disse e repito.
FOLHA - O Supremo é mais rigoroso para receber denúncias de crimes
de colarinho branco?
BARBOSA - O Supremo é bem
mais rigoroso em matéria penal
em geral. O tribunal tem a tradição de mais rigor, nesses últimos anos. Vejamos o caso do
mensalão. Com a importância
do STF, com o número de causas e problemas seríssimos que
tem para resolver, é racional
que o tribunal gaste cinco dias
inteiros só para julgar o recebimento de uma denúncia? Com
todas as dificuldades que o Brasil inteiro assistiu ao vivo?
O recebimento de uma denúncia como aquela, no primeiro grau, seria um despacho
de duas páginas.
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