São Paulo, segunda-feira, 25 de novembro de 2002

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ENTREVISTA DA 2ª

Diretor-geral do Fórum Econômico Mundial compara presidente eleito a Felipe González

Lula deve evitar populismo, diz Figueres

ELIANE CANTANHÊDE
JOSÉ ALAN DIAS
ENVIADOS ESPECIAIS AO RIO

Para o diretor-geral do Fórum Econômico Mundial, José María Figueres, o maior desafio do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, é "evitar que as pessoas próximas a ele e as circunstâncias o empurrem ao populismo". Segundo ele, "a verdadeira ameaça para a democracia na América Latina vem do populismo".
Ex-presidente da Costa Rica (94-98), Figueres, 48, considerou "uma lástima" a recusa de Lula a comparecer à Cúpula de Negócios da América Latina, vinculada ao Fórum Econômico, realizada no Rio na semana passada.
"Seria uma oportunidade de apresentar algumas de suas diretrizes para a economia e a área social", afirmou Figueres. "Esses dois fatores se conjugam por meio da confiança. E confiança só se cria ao se compartilhar uma mensagem e expondo claramente o que se pretende fazer."
Figueres argumenta que "o fato de Lula vir da esquerda não tem nada de mais, não é motivo para medo". "Só se deve evitar a tentação do populismo."
Ele refutou qualquer comparação do futuro presidente brasileiro com o venezuelano Hugo Chávez ou o cubano Fidel Castro. "Lula tem todas as condições de se assemelhar a Felipe González, um homem de um partido de esquerda, que assumiu o país em condições difíceis e promoveu a construção da Espanha moderna, tal como conhecemos hoje."
Sobre os Estados Unidos: ""Se houver 150 pontos na agenda, a América Latina será o de número 200 [para o governo George W. Bush]. Simplesmente não estamos na agenda", disse.
A comentar a formação da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), Figueres foi irônico e resumiu da seguinte forma a atitude dos países desenvolvidos: "Meu mercado é somente meu, sobretudo na agricultura, e o teu mercado é nosso. Estou disposto a dividi-lo com você".
Formado em engenharia em West Point, a mais importante academia militar dos EUA, e com pós-graduação em administração pública em Harvard, José María Figueres concedeu a entrevista à Folha durante a Cúpula.

Folha - O que o sr. achou da decisão do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, de não comparecer à cúpula, apesar de convidado duas vezes?
José María Figueres -
É uma lástima, porque era uma oportunidade para Lula começar a apresentar algumas diretrizes diante da comunidade internacional, tanto do seu programa econômico como do social. Imagino que esteja muito ocupado com tudo o que diz respeito à transição, de forma que também precisamos compreender [a ausência].

Folha - Ausente, ele foi o personagem mais discutido e até algumas vezes atacado no encontro, mas não teve como se defender. O sr. concorda?
Figueres -
Acredito que Lula não tenha sofrido críticas no sentido como conhecemos. O que existe é uma grande expectativa sobre como ele irá lidar com as obrigações que assumiu.
Por um lado, tem o compromisso do crescimento econômico e, por outro, tem a dívida social. A pergunta que se faz é como irá conjugar esses dois fatores. A verdade é que eles começam a juntar-se por meio da criação de confiança. E a confiança se cria, entre outras coisas, ao compartilhar uma mensagem e tendo clareza sobre o que se pretende fazer.

Folha - Uma pesquisa informal com cerca de 80 homens de negócios durante a Cúpula apontou que 15% não crêem que Lula complete seu mandato. O que o sr. pensa a respeito disso?
Figueres -
A democracia na América Latina se fortaleceu muito nos últimos anos. Creio que, se estivéssemos vivendo não agora, mas 20 anos atrás, com uma décima parte dos desafios que enfrentamos na Argentina, no Brasil e outros países, estaríamos já sob governos militares.
O que percebo é uma mudança na tolerância dos povos da América Latina acerca do que se promete em campanha e o que se faz quando se assume o governo.
Até há poucos anos, era mais ou menos tolerável que um candidato tivesse uma mensagem na campanha e depois, ao assumir o governo, ao encarar a realidade, fosse obrigado a fazer outra coisa. Essa flexibilidade não existe mais.

Folha - O sr. falou em fortalecimento da democracia. No entanto, há sinais claros de convulsão na Venezuela, Colômbia, Paraguai...
Figueres -
Não vejo ameaças à democracia que venham dos militares, porque estes estão em seus quartéis e finalmente compreenderam que governar é excessivamente complicado.
Nem penso que a ameaça à democracia venha nem de governos ou partidos de esquerda ou de direita. A verdadeira ameaça para a democracia na América Latina vem do populismo.
É nesse ponto que precisamos abrir muito bem os olhos e entender de uma vez por todas que o desafio do desenvolvimento é muito complexo. Se desenvolvimento fosse fácil, todos o teríamos alcançado. Não esperemos soluções mágicas.
As pessoas não estão dispostas a escutar promessas de soluções mágicas. O que querem é um claro caminho em direção ao futuro, que não haja corrupção e que haja clareza de objetivos.

Folha - Lula fez compromissos vagos durante a campanha e promete responsabilidade fiscal e combate à corrupção. Por outro lado, tem o compromisso de fazer um governo diferente em uma área chave no continente, a social...
Figueres -
Essas são, obviamente, a grande incógnita e a grande expectativa que mantemos todos. Veremos...Como o presidente Lula fará para pagar a dívida econômica e a dívida social ao mesmo tempo? Como fará para manter o equilíbrio fiscal e aumentar o investimento social?
Sou otimista, acredito que Lula fará um bom governo. Ele demonstrou grande habilidade ao longo de sua trajetória política para compor interesses que aparentemente pareciam divergentes de forma interna, em seu partido, e para o público externo também.

Folha - Dissemina-se a impressão de que Lula possa abrir um caminho, estabelecer um novo modelo que não seja o do Consenso de Washington. O sr. acredita?
Figueres -
Isso é fantástico. Que mal haveria nisso? Nenhum.

Folha - O fórum não poderia ter feito sugestões nesse sentido?
Figueres -
O fórum não é para apresentar sugestões. Servimos como uma plataforma para discutir diferentes posições e para que as pessoas tirem suas conclusões. A verdade é que o Consenso de Washington -o qual, penso eu, não existe mais- deixou como herança um profundo respeito pelo equilíbrio macroeconômico. Pelas contas fiscais, pelas contas monetárias, pelas contas de comércio. Ninguém mais questiona esses pontos.
No que esse modelo falhou foi a questão social, porque não logramos os avanços que deveríamos ter obtido na luta contra a pobreza. Necessitamos buscar a maneira para fazer do desenvolvimento uma oportunidade empresarial. Que, em vez de um bilhão de consumidores, o mundo conseguisse colocar no papel de consumidores quatro bilhões de pessoas, que participassem das economias de seus países e de suas regiões.
Acontece que, com uma economia globalizada, como a que temos, há seis bilhões de habitantes, mas apenas um bilhão de consumidores. Isso não é sustentável. É uma bomba-relógio. O social já não pode ser secundário ao econômico. O social, ao lado do ambiental, tem a mesma importância que o econômico.

Folha - O discurso do presidente Chávez era esse e faliu. O que ocorreu na Venezuela se o discurso era adequado?
Figueres -
Chávez falhou porque foi limitado na implementação. Para começar, não vejo na Venezuela nenhum respeito pelos princípios macroeconômicos.e tudo indica que caminha para uma guerra civil.
A capacidade de diálogo e, o mais importante, a vontade para o diálogo se perderam.

Folha - Houve setores políticos e do sistema financeiro que compararam ou seguem comparando Lula a Chávez.
Figueres -
A comparação que precisamos fazer de Lula não é com Chávez e muito menos com Fidel [Castro". A comparação a ser feita é com Felipe González [premiê da Espanha entre 1982 e 1996".
Um homem que vem de um partido de esquerda, assume o poder em um momento complicado e transforma muito mais do que todos esperavam, convertendo-se no arquiteto da Espanha moderna. Esse é o modelo a seguir. E o fato de que Lula venha da esquerda não tem nada de mais. Nem é motivo para que se tenha medo dele. O que teremos de evitar é que as pessoas próximas a ele e as circunstâncias o conduzam ao populismo.

Folha - Colocado assim, o Fórum Econômico Mundial não fica bem parecido com o Fórum Social Mundial?
Figueres -
Se os dois fóruns trabalhassem juntos, se poderia fazer muito. Dar aos mercados o que é dos mercados. E acreditamos nos mercados. Mas é preciso revitalizar e fortalecer as instituições, para que sejam boas, para que os governos sejam bons e respondam às necessidades. Falhamos também ao não proporcionar uma melhor distribuição de riquezas em nossos países.
A América Latina não tem problemas apenas por ser um continente pobre. A América Latina é também o continente mais desigual de todos. A diferença de renda entre os de cima e os de baixo é a mais abismal entre os continentes. É uma vergonha. Enquanto não repartirmos melhor o que produzimos não vamos sair de convulsões e não vamos obter um crescimento sustentável.

Folha - E as relações com os EUA.? O que é preciso implementar?
Figueres -
Reconheço a vitalidade de seus mercados e seu sentido de empreendedorismo. Depois de dizer tudo isso, tenho a impressão de que na agenda do governo norte-americano, se houver 150 prioridades, a América Latina será a de número 200. Ou seja, não estamos na agenda. A prioridade deles é outra.

Folha - A Alca é um bom negócio para o Brasil?
Figueres -
É um bom negócio para todos os países, independentemente da etapa de desenvolvimento. É uma expectativa de abarcar os mercados para colocar seus produtos. Em acordos de livre mercado, é preciso haver regras mínimas de gradualidade, de assimetria, para reconhecer diferentes pontos de partida dos países, até que se caminhe para uma convergência.

Folha - Essa assimetria é possível na negociação com os EUA?
Figueres -
Parece muito difícil. O que os países desenvolvidos nos têm dito nos últimos anos é: "Meu mercado é somente meu, sobretudo na agricultura. E o teu mercado é nosso, estou disposto a dividi-lo com você".
É nesse item que teremos de começar a mudar as coisas. Lula, por ser de um partido de esquerda, por ser presidente do Brasil, eleito com maior número de votos no mundo [na realidade, o recordista é o americano Ronald Reagan, com 54.455.075 votos em 1984; Lula teve 52.793.364], por todas essas condições e pelo entorno mundial, tomara que faça o Brasil assumir a condição de liderança global para avançar nas questões de assimetria.

Folha - A maioria dos empresários ouvidos no fórum acredita que um governo Lula vai representar uma deterioração das relações com os EUA. Não é preocupante?
Figueres -
Essa percepção pode ser mudada com os fatos. EUA e Brasil, por coincidências divinas, assumiram a liderança das negociações da Alca. Parece-me que há uma primeira oportunidade para estabelecer regras de jogo muito mais justas para os países em desenvolvimento.
Não estou dizendo que seja fácil. Mas que é absolutamente necessário. A grande vantagem que temos nisso tudo é que a crise não é da América Latina nem muito menos do Brasil. A crise é global e afeta os países desenvolvidos. E, ao afetá-los, eles estarão dispostos a buscar soluções.


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