São Paulo, Quinta-feira, 26 de Agosto de 1999
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ARTIGO
Um pacto não escrito


"A anistia não foi fruto de um grupo, mas algo que foi se formando na consciência da nação"


JOSÉ GREGORI
especial para a Folha

O 28 de agosto de 1979 não é uma data qualquer, mas um marco na história da civilização brasileira. Há 20 anos, foi possível uma interrupção no arbítrio então vigorante e uma retomada histórica da nossa dimensão humanista que não permite que as desavenças políticas, ainda que radicalizadas, se eternizem.
Veio a anistia e, com ela, cessou a prisão, terminou o exílio e a abstinência cívica, extinguiram-se processos penais para milhares de brasileiros que afrontaram a "legalidade" sem legitimidade do regime não democrático que dominou o país.
Como tudo que é realmente importante e marca a caminhada dos povos, a anistia não foi fruto de uma pessoa ou de um grupo, mas algo que foi, passo a passo, se formando na consciência do que chamamos de nação, que é algo que está além do Estado, do governo e da sociedade civil.
A nação é, especialmente, a consciência do que é permanente, do que deve pairar acima dos interesses e paixões imediatas, e, de tempos em tempos, imprime sua presença e marca. A anistia foi uma dessas marcas.
É claro que houve movimentação social e política pela anistia a partir do grito pioneiro de Therezinha Zerbini, que ecoou na formação de inúmeros Comitês de Anistia. Houve esforço do partido que, então, hospedava toda a oposição, o MDB. Houve trabalho de setores, leigos e da hierarquia, da igreja, lembrar d. Paulo Evaristo Arns é de justiça. Houve a contribuição liberal da OAB e dos meios universitários na SBPC. Houve, até, reservas de descortino entre alguns membros do próprio regime vigente. Houve, finalmente, a solidariedade de personalidades e instituições estrangeiras.
Tais fatores contribuíram, e muito, para que ficasse nítida a consciência geral de que era preciso estancar o arbítrio e preparar o Brasil para a democracia ainda longínqua. Houve, portanto, generosidade e competência. Especialmente, competência para fugir aos modelos de saída ou transição dos regimes autoritários sem anistia, que se eternizam em lutas fratricidas e acabam não colimando na democracia.
Comemorar a anistia, portanto, é um pouco envaidecer-se desse nosso país que foi -e é-capaz, por pactos sociopolíticos não escritos, de intuir os melhores caminhos para fugir da injustiça e do sofrimento.
A anistia prefaciou a campanha das diretas, que prepararam a atual democracia que temos a obrigação de torná-la, cada vez mais, agregadora e definitiva.
Sei, como poucos -e como desejaria esquecer- o imenso passivo de mortes, sofrimentos, desmoronamentos pessoais e familiares que o arbítrio causou nesse país.
Por isso mesmo não posso compreender, a não ser como aberrações, a recidiva de golpismo que se insinua entre nós atualmente.
Sabemos todos, a menos que fôssemos incapazes de aprender com a história, o que custa interromper as regras do processo democrático e mergulhar no arbítrio. Essa megadesgraça só a podem desejar os que não viveram o Brasil dos últimos 30 anos ou os que, tendo vivido, não entenderam nada do que viveram.


José Gregori, 67, é secretário de Estado dos Direitos Humanos

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