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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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NO PLANALTO

Saiba por que a cadeia é usina de crime

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A criminalidade é questão das mais discutidas. Exausto de tanto debate, o Brasil se imagina diante de dilema sem solução. Engano. Na verdade, o país nem sequer enxergou o problema. Pior: talvez não queira enxergar.
Pede-se mais polícia e mais presídios. Como se a cadeia fosse o fim do problema. Bobagem. É no cárcere que a encrenca começa.
A despeito dos grupos de extermínio, não há entre nós a pena de morte formal. Nem a prisão perpétua. Ou seja, quem sobrevive à cana está condenado à liberdade.
Desnecessário qualificar as cadeias brasileiras. Qualquer zoológico oferece estadia mais decente. Tratado assim, como sub-bicho, o preso vira uma fera. E ganha as ruas.
Documento entregue às principais autoridades da República em janeiro de 2003 informa: 70% dos 295 mil presos brasileiros são reincidentes. O texto foi produzido por auditores do Tribunal de Contas da União.
Analisaram-se dados relativos à fase de 2000 a 2002. Quem lê o trabalho percebe que a violência não é fruto de improviso. Nossas cadeias são deliberadamente estruturadas como escolas do crime.
Algumas informações expostas no relatório:
1) virou letra morta a Lei de Execução Penal, de 1984. Contém normas de "prevenção" ao crime e "ressocialização" do criminoso. Estabelece os "direitos" do preso -educação e trabalho, por exemplo;
2) "as penitenciárias não foram planejadas para atividades de educação, profissionalização e trabalho." Faltam salas de aula e oficinas;
3) há no país 46.514 agentes penitenciários. Só 5.449 atuam em atividades de "ressocialização. Os demais 72,5% dedicam-se à segurança;
4) visitaram-se 18 cadeias em nove Estados. Entrevistaram-se 108 presos. Enviaram-se questionários a todas as prisões de regime fechado. As respostas indicam que 77% da população carcerária não estuda. Onde há ensino, ele é precário e descontinuado;
5) São Paulo guarda em seus calabouços 72.140 criminosos (40% do universo carcerário nacional). Só 12.500 (17%) estudam. Registrou-se percentual idêntico no Distrito Federal, Ceará, Paraíba e Bahia;
6) em Estados como Espírito Santo, Acre, Rondônia, Goiás, Amazonas e Pará só 7% dos presos têm acesso a educação;
7) o Paraná, campeão de civilidade, oferece ensino a míseros 31% de seus detentos. Seguem-se Minas (30%), Mato Grosso e Maranhão (ambos com 28%) e, mais atrás, Rio Grande do Sul, Amapá e Alagoas (todos com cerca de 20%);
8) a qualificação profissional é virtualmente inexistente. Em São Paulo, "se aproxima de zero". Nos Estados mais bem estruturados passa de 50% o número de presos mantidos no ócio. O "direito" ao trabalho converteu-se em "privilégio";
9) o preso-trabalhador deveria receber pelo menos 70% do salário mínimo. Nem sempre recebe. Convênios com empresas privadas são, em muitos casos, desvirtuados. No presídio feminino de Brasília, por exemplo, "empresas se instalam de maneira informal". Flagraram-se detentas trabalhando sem receber;
10) contam-se nos dedos de uma mão as experiências positivas implantadas nos Estados. São programas oficiais, parcerias com entidades como o Sebrae e convênios com empresas. Mas "as boas práticas ainda não estão devidamente consolidadas";
Ouvido, Angelo Roncalli, diretor do Departamento Penitenciário Nacional (Ministério da Justiça), diz: "A visão atual privilegia a segurança, atividade meio. É preciso migrar para um sistema que contemple a ressocialização, atividade fim. Se fizermos tudo certinho, em 20 anos o quadro pode estar melhor".
Gerência de presídios, lembra Roncalli, é obrigação dos Estados. Brasília ajuda pouco. No orçamento de 2003 há R$ 217 milhões. Só R$ 2 milhões vão para a assistência ao preso. O resto financiará a construção e reforma de cadeias.
Em 1995, havia no país 95 mil presos. Hoje, há 295 mil. Só São Paulo faz 1.500 novas detenções a cada mês. "O governo paulista teria de construir três novos presídios a cada 30 dias, o que não ocorre", contabiliza Roncalli. "Enquanto não for resolvido o problema da superlotação, fica difícil investir em outra coisa."
A discussão sobre a necessidade de "humanizar" as prisões é coisa do século 18. A conveniência da "ressocialização" do criminoso tonificou-se no final do século 19. Atrasados em mais de um século, ainda não acordamos para o problema.
Por sorte, temos os pés no chão. E as mãos também. Em futuro próximo, teremos casas com portas a prova de canhão. Seu filho o identificará pelo olho mágico. Você dirá a senha. Em 15 minutos, ele dará as cinquenta voltas na chave. Mais 20 minutos e todas as trancas estarão destravadas. Tempo suficiente para você, precavido, levar a mão ao revólver.
No interior do quarto de TV blindado, enterrado no segundo subsolo de sua casa-fortaleza, você verá no noticiário um flash, ao vivo, sobre a 35ª rebelião carcerária das últimas 24 horas. Antes de dormir, perguntará à sua mulher quantas vezes ela foi assaltada no dia. "Só sete pela manhã e nove à tarde." E vocês dormirão aliviados.


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