São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2000


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ELIO GASPARI

A escola pública vira sucata. A privada ganha BNDES




O doutor Alcides Tápias já disse que "o BNDES não é hospital". Poderia perguntar o que vem a ser o pomposo Programa de Recuperação e Ampliação de Meios Físicos das Instituições de Ensino Superior.
Na semana passada o ministro da Educação, Paulo Renato Souza, festejou-o por conta da ampliação de sua carteira de empréstimos, de R$ 500 milhões para R$ 750 milhões. Trata-se do velho dinheiro camarada, a juros de 16% ao ano para os afortunados, enquanto uma empresa daquelas que só servem para pagar impostos não consegue se financiar por menos de 30%.
Esse programa tem dois anos e é um retrato da política de gogologia do governo, associada ao desmanche da universidade pública. No papel, ele se destina a financiar a construção e reforma de escolas superiores públicas e privadas.
Lorota. Já emprestou R$ 194 milhões a 20 escolas superiores. Quantas universidades públicas? Zero. Há outros 20 pedidos, para mais R$ 181 milhões. Quantas escolas públicas? Só a Escola Naval.
Até aí o BNDES e o MEC estão apenas iludindo a escumalha. Dizem que criaram um programa para reequipar as faculdades públicas e privadas, mas o dinheiro saiu só para as instituições particulares. Isso num cenário em que a participação das instituições federais de ensino superior nas despesas da União caiu de 2,94% em 1995 para prováveis 1,73% em 1999. (Noves fora a despesa com inativos e precatórios.) O dinheiro da patuléia foi para as escolas que cobram mensalidades e com isso faturam R$ 5 bilhões por ano. As gratuitas, que pertencem ao povo, atendem cerca de meio milhão de pessoas (33% das matrículas) e são responsáveis por 90% da produção cientifica nacional, ficaram de fora.
De fora ficaram porque dentro nunca estiveram. Como as universidades públicas não podem dar garantias patrimoniais, nunca passou pela idéia do BNDES emprestar-lhes um só tostão.
A coisa piora quando se ouve o que disse o ministro da Educação, Paulo Renato Souza. Ele relacionou a linha de financiamento do BNDES ao interesse das escolas privadas de se livrarem das más avaliações que receberam do MEC. Disse assim: "O ministério não só aponta os problemas, mas também oferece recursos". Quando um aluno tira nota baixa é reprovado. Quando sua família não tem dinheiro para pagar a escola, ele corre o risco de ser posto para fora. Quando é a faculdade quem leva bomba, vem o MEC com o dinheiro do BNDES para socorrê-la.
A lista das 20 escolas privadas que já receberam dinheiro do banco não permite que se recrimine genericamente o programa. Pelo contrário. Há as faculdades privadas pedagógicas, assim como há as privadas hidráulicas. Oito financiamentos foram para universidades comunitárias do Sul do país. Os R$ 27,5 milhões emprestados à Unisinos, bem como os R$ 24,9 milhões da Universidade de Santa Cruz do Sul, indicam que o programa, mesmo sendo discriminatório, não é uma torrefadora de dinheiro público. O programa é discriminatório porque nenhuma das escolas financiadas tem o seu campus em estado de miséria igual ao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Em dois casos, só um exame dos processos poderá lançar luz sobre os negócios. A Universidade Brás Cubas, de Mogi das Cruzes, levou R$ 7,2 milhões, mas já foi pilhada fazendo vestibular de odontologia sem ter o curso aprovado pelo MEC. A Universidade Bandeirantes, de São Paulo, conseguiu R$ 11,5 milhões. Esteve encrencada com o Conselho Nacional de Educação, acusada de estar se transformando numa rede de franquias. Instalações não lhe faltam, pois até shopping center tem no campus. O CNE solicitou, sem sucesso, a abertura de um inquérito para apurar irregularidades de sua administração. Assim, enquanto um ramo da administração pública quer regular a sua ação, outro entrega-lhe dinheiro do FAT.
O BNDES informou também que está estudando a possibilidade de vir a financiar os compradores de imóveis das universidades públicas. É delírio. Se a Universidade Federal do Rio de Janeiro está caindo aos pedaços porque não pode dar o seu patrimônio imobiliário como garantia ao BNDES, isso nada tem a ver com emprestar dinheiro a juros baratos aos eventuais compradores de seus terrenos. Maracutaia. O cidadão que compra um terreno de Jack, o Estripador, ou de uma universidade federal é apenas um cidadão que compra um terreno, para ganhar dinheiro. O BNDES não tem por que financiá-lo. Nesse ritmo, o BNDES jamais chegará a hospital. Será um cabaré para quem lhe toma o dinheiro e necrotério para o patrimônio da Viúva.
Vem aí o Carnaval e, com ele, sempre há quem pense em aproveitar o tempo para ler um livro. Para quem tem interesse em saber o que estão fazendo com o ensino superior brasileiro, vai aqui uma sugestão agreste. Tente achar "Universidade em Ruínas - Na República dos Professores", organizado pelo professor Hélgio Trindade. São só 222 páginas. Por tristes, podem ser rapidamente compensadas pela batucada.



Quem se desloca (Gros) recebe. Quem pede (Tápias) tem preferência



Às 20h do último dia 15, uma terça-feira, o PSDB teve uma das maiores vitórias de sua existência. Aumentou sua bancada de deputados em 4%, ficou com 103 parlamentares e tornou-se o maior partido na Câmara. Para quê? Para nada. Exatamente à mesma hora, o tucanato estava levando o maior chapéu dos últimos anos. Num outro ponto de Brasília, jantavam juntos o ministro Pedro Malan, o presidente do Banco Central, Armínio Fraga, e o banqueiro Francisco Gros. O PSDB estava perdendo o BNDES, um cofre com R$ 20 bilhões.
Cumpriu-se uma velha escrita. FFHH não frita, assa com microondas. Durante quase um mês, o economista Andrea Calabi andou por Brasília sem perceber que estava bem passado.
Nesse episódio desenrolaram-se duas histórias. Numa, o ministro do Desenvolvimento, Alcides Tápias, tratava de extrair Calabi da presidência do BNDES. Na outra, com a ajuda de Malan e Armínio Fraga, nomeou seu substituto. A primeira é banal. A segunda, manobra primorosa.
No início deste mês, Tápias disse a FFHH que pretendia demitir Calabi. Recebeu dele uma palavra conciliadora e uma licença para matar, com a recomendação de que operasse com cautela, discrição e, sobretudo, mantendo-o informado.
A quem Tápias contou essa conversa, não se sabe, mas nesses dias as relações de Malan com o ministro José Serra haviam chegado a um inédito grau de hostilidade. Calabi fora colaborador do grão-tucano e era razoável que ele o defendesse junto a FFHH. Os adversários de Serra, em vez de trabalhar a saída de Calabi, construíram seu substituto. Os nomes na mesa foram três. Edward Amadeo, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, caiu porque pareceria ligado a Malan. Ficaram o banqueiro Pedro Bodin (ex-BC, hoje no Icatu) e Francisco Gros (ex-BC, do Morgan Stanley). O entusiasmo de Armínio Fraga (ex-BC, ex-Soros) ia para Gros.
No dia 8, uma terça-feira, o ministro Alcides Tápias recebeu um telefonema quase social de Francisco Gros. Lero vai, lero vem, o banqueiro disse-lhe que buscava novos desafios. O ministro perguntou-lhe, quase em tom de curiosidade, se achava boa idéia vir a presidir o BNDES. Não era um convite, mas Gros achou-a ótima. Qual força do destino fez com que Gros ligasse naquele dia, não se sabe. Se o tivesse feito duas semanas antes, Tápias não teria desafio a oferecer-lhe. (Nessa hora, Calabi estava no Senado, depondo na Comissão de Assuntos Econômicos.)
A partir daí sucederam-se telefonemas entre Malan, Tápias, Fraga e Gros. No dia 10, FFHH reuniu Serra e Malan no Alvorada, para pacificar as relações dos dois, deterioradas pela crise do preço dos remédios. A essa altura, Serra sabia que Calabi corria riscos, mas o próprio FFHH pensava ser possível preservá-lo.
No sábado, dia 12, Malan esteve com FFHH no Alvorada. Francisco Gros estava em São Paulo, reunido com Alcides Tápias em seu apartamento do Tatuapé. Conversaram por cinco horas.
Na noite de terça-feira, dia 15, enquanto os tucanos comemoravam a vitória na Câmara, Gros saiu do jantar com Fraga e Malan e telefonou a Tápias, narrando-o. Na manhã seguinte o ministro do Desenvolvimento contou tudo a FFHH e sugeriu-lhe que recebesse Gros. Gros chegou ao Alvorada às 15h. Tápias e Calabi estavam no Planalto, discutindo a crise dos transportes aéreos.
Gros voltou para Nova York dias depois. A essa altura já fora sabatinado por Tápias, Malan, Fraga e FFHH, mas ainda não tinha o convite formal. Para quem queria degolar Calabi, o substituto já estava pronto. Faltava apenas cuidar do sincronismo. Era necessário que o BNDES ficasse o mínimo de tempo possível sem cabeça.
Serra esteve ou falou ao telefone com o presidente todos os dias. Soube que Calabi poderia cair e que Gros era um dos nomes para substituí-lo. (Não soube, contudo, do encontro de FFHH com o banqueiro.) Achava que Calabi ainda tinha 50% de chances.
Na segunda-feira, Tápias chamou Calabi a Brasília, e o presidente do BNDES ficou na situação do cidadão que se hospeda numa pequena pousada que tem Anthony Perkins como porteiro. O ministro disse-lhe que pensava em trocá-lo, mas a conversa foi inconclusiva. Calabi não percebeu aonde tinha entrado. Tápias já tinha autorização de FFHH para baixar a lâmina. A certa altura, recebeu um telefonema de Serra. Talvez Tápias esperasse que Serra mencionasse o caso de Calabi. Talvez Serra pensasse que Tápias o fizesse, mas o fato é que os dois se despediram como se o assunto não existisse.
Na terça-feira à tarde Tápias levou Calabi ao seu gabinete. Foi o equivalente à hora em que Janet Leigh entrou no chuveiro do hotel da hospedaria de "Psicose", sob a direção de Alfred Hitchcock. O ministro desceu-lhe a faca.
Gros já tinha pedido demissão do Morgan Stanley e estava a caminho do aeroporto John Kennedy.
Poucas vezes uma operação desse tipo foi tão bem conduzida. É provável que FFHH tivesse preferido manter Calabi, mas Tápias queria demiti-lo, jogou as cartas sobre a mesa e arrastou as fichas. Fez isso com a ajuda de Malan e Armínio Fraga, que lhe puseram na sopeira um substituto protegido pelo segredo.
Enquanto FFHH esteve em dúvida, Serra chegou a acreditar que o presidente não demitiria Calabi. Depois, talvez tenha achado que o nome de Gros não estava maduro junto a FFHH. Duplo engano.
Mais uma vez, demonstrou-se a sabedoria do velho ensinamento do técnico de futebol Gentil Cardoso:
"Quem se desloca recebe, quem pede tem preferência."
(Em tempo: O PFL voltou a ser o maior partido da Câmara. Quando o PSDB ficou sem o BNDES, ele já estava com 105 deputados.)


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