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São Paulo, domingo, 27 de julho de 2003

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Na zona leste de São Paulo, levantamento informal com 20 moradores mostra que 72% estão desempregados

Na rua do Trabalho, o emprego virou sonho

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Depois de 29 anos e 11 meses de trabalho, o almoxarife Alcides Antunes Medeiros achou que chegara a hora de "colocar o burro na sombra": mais um mês e adeus trabalho, estaria aposentado. Medeiros, 53, não imaginava que entre ele e a aposentadoria havia a globalização e o sumiço do emprego. O banco em que trabalhava foi comprado por um gigante espanhol, o Santander. Ele foi demitido e, quatro anos depois, continua desempregado.
Para se aposentar, teve que pagar o mês que faltava do próprio bolso, mas ainda não viu a cor do dinheiro três anos depois de ter dado entrada com o pedido.
"Lá na Previdência ou eles estão em greve ou o sistema está fora do ar. Nada funciona", reclama. Ele sobrevive vendendo cerveja e refrigerante no Parque Ecológico do Tietê. Fatura R$ 100, R$ 120 por fim de semana.
Casos como o Medeiros são rotineiros onde mora, na rua do Trabalho, numa região de classe média baixa em Vila Matilde, zona leste de São Paulo, com casas térreas geminadas espremidas entre jardinzinhos com roseiras e um cimentado à guisa de quintal ao fundo. Levantamento informal feito pela Folha com 20 moradores da rua do Trabalho, sem qualquer valor estatístico, mostrou que a taxa recorde de 13% de desempregados, divulgada semana passada, seria um sonho por ali. Na rua do Trabalho, 72% dos entrevistados estão desempregados.
Sem emprego, bico ou biscate tornaram-se um modo de vida na rua do Trabalho. Cada um se vira como pode. Fernando Ferreira Baldaia, 22, que teve um único emprego com carteira assinada e está desempregado há três anos, procurava comprador para um canário no bar Casa do Norte, aberto pelo também desempregado Márcio Batista Gonçalves, 41.
"Fiz curso de cozinheiro no Senac, de dois anos, mas sobrevivo fazendo bico como pintor", diz Baldaia. Currículo de cozinheiro, ele quase desistiu de mandar. "Já mandei mais de mil, mas não me aceitam porque tenho pouco estudo e por causa da cor", diz o rapaz negro que saiu da escola na 4ª série. Sobrevive com R$ 200, a metade do que ganhava quando era repositor num supermercado e saiu brigado com o gerente que chamou-o de "nego preguiçoso".
"Agora, não dá mais para sair e dançar no Projeto Radial. Funk, rap, pagode, tem de tudo lá, tudo coisa que eu gosto. Minha diversão é trazer meus filhos para o bar e jogar conversa fora."
A coluna de perdas e danos de Armando Hernandes, 49, é bem mais extensa e dramática. Desempregado há nove anos, quando foi demitido do cargo de analista de transportes da CMTC (a privatizada empresa de ônibus paulistana), viu seu salário encolher de R$ 6.600 para uma média de R$ 800, a soma dos bicos que faz vendendo lenha para pizzarias ou instalando terminais de computador.
Hernandes diz ter feito três faculdades (química na USP, física e matemática em universidades privadas), mas seu ganho fixo não passa de R$ 35 por semana com duas aulas de química que dá numa escola (R$ 17,50 por aula). "O que me salvou o ano é que vendi um sobrado e ganhei R$ 12 mil de comissão", relata.
As perdas afetivas não foram menores. O desemprego, segundo ele, acelerou o fim do casamento. As pescarias e as viagens acabaram. Os amigos sumiram. "Quando falta dinheiro, a mulher e os amigos entre aspas desaparecem. É a parte mais chata da vida de desempregado", diz.
A coisa mais rara da rua do Trabalho é achar alguém com menos de 25 anos que tenha tido a carteira assinada alguma vez na vida. Aos 24 anos, 2º grau completo e curso de mecânico de refrigeração no Senai, Rodrigo Batista Moraes queria seguir os passos do pai, ex-encarregado de ferramentaria da Bosch: "Meu sonho era trabalhar numa firma boa, numa multinacional. Mas todo mundo exige três anos de experiência. Como vou ter experiência se não me dão chance de começar?"
Casado com uma secretária, que ganha R$ 530 por mês, Moraes tornou-se motoboy ("Filho de rico é boy. Filho de pobre é motoboy" é a divisa em seu capacete). Quando tudo dá certo e a moto não quebra, ganha até R$ 500 levando pizzas e pastéis. "Do jeito que as coisas estão, não sonho mais. Acho que nunca vou ter carteira assinada. Só não entendo por que querem mexer na Previdência. Por que mexer na aposentadoria se não tem emprego?"
Os sonhos não sumiram, mas foram se apequenando para Eric Américo da Silva, 19. Com o 2º grau completo, ele ganha cerca de R$ 200 por mês entregando galões de água. Há três, quatros anos, sonhava ser cartunista e seguir os passos de um de seus heróis, Genndy Tartakovsky, o criador do desenho animado "O Laboratório de Dexter", cujo nome soletra com precisão e sem qualquer vestígio de exibicionismo.
Seu sonho agora é bem mais comezinho: quer ter um emprego com carteira: "Sem carteira, eu nunca sei quanto vou receber no final do mês porque eu ganho por cada entrega que faço. Não dá para fazer dívida nem planos de longo prazo. Só dá para viver o presente e isso é meio chato".
O aposentado Euclides Sala, 70, não tem por que reclamar de trabalho: foi empregado por 58 anos. Mas, como não consegue sobreviver com o salário mínimo que ganha como aposentadoria, montou uma oficina de conserto de geladeiras e máquinas de lavar.
O problema é que os serviços na vizinhança foram minguando tanto que hoje a oficina não rende mais do que R$ 50, R$ 60 por semana. "Comecei a trabalhar aos 12 anos, em 1935. Consertava máquina de costura na rua Maria Marcolina. Nunca vi tanta gente sem ter o que fazer. Tudo por aqui já foi melhor", recorda Sala.


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