São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2000


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QUESTÃO INDÍGENA
Iniciativa, que visa a formar professores da língua, é inédita
Homem branco ensinará tupi a índios na Paraíba

LUCAS FIGUEIREDO
DA REPORTAGEM LOCAL

Karaíba amõ osó apyaba mbo'ebo abá nhe'enga resé petiguara retãme. Isso mesmo: um branco vai ensinar tupi para os índios da Paraíba.
A iniciativa -que visa a formar professores de tupi entre os índios e recuperar o uso da língua, quase morta- é inédita no país.
Daqui a duas semanas, o professor de tupi do Departamento de Letras Clássicas da USP, Eduardo de Almeida Navarro, partirá para Baía da Traição, a 80 km de João Pessoa, para dar início ao projeto.
Numa primeira fase, 60 índios potiguara -os futuros professores de tupi- vão estudar a língua em aulas diárias de três horas de duração, durante seis meses. Depois, serão abertos cursos para crianças e adultos.
"As crianças é que vão fazer a língua ressuscitar. Será uma iniciativa histórica. É a primeira vez que isso acontece no Brasil", afirma o professor Navarro.
O projeto foi idealizado no início deste ano, quando o professor foi convidado a falar numa sessão da Assembléia Legislativa da Paraíba.
Ele aproveitou a presença de vários índios potiguara (ainda restam cerca 8.000 no país) e fez parte do seu discurso em tupi.
Vários índios choraram de emoção ao ouvir a língua que um dia seus ancestrais falaram. Alguns deles então pediram ao professor que lhes ensinasse a língua.
O projeto tomou corpo, e a Comissão de Direitos Humanos da Mulher Potiguara, com o aval da Funai (Fundação Nacional do Índio), convidou Navarro para lecionar o tupi para os potiguaras.
Dos 40 grupos indígenas do Nordeste, somente 1 conserva a língua original -a nação fulnio, que fala a língua de mesmo nome.
Concentrados nos Estados do Amazonas e de Sergipe, poucos são os índios que ainda falam tupi. "Eles, no entanto, têm a sorte de o tupi ser uma língua gramaticalizada", afirma Navarro.
O tupi, língua clássica, foi a mais estudada entre todas as faladas pelos indígenas do país.
Na verdade, foi a língua mais utilizada no Brasil até meados do século 17.
"Os portugueses tiveram de aprender o tupi -chamada na época da colônia de "língua brasílica'- porque, do contrário, seria impossível colonizar o país. Muitos africanos também falaram o tupi", afirma Navarro.
Como herança dessa época, há milhares de palavras e expressões em tupi usadas até hoje, como Pernambuco (fenda de mar), nhenhenhém (falar, falar, falar), pitanga (vermelho), Maracanã (uma espécie de periquito), mirim (pequeno) e mingau.
No século 16, padre Anchieta chegou a escrever peças de teatro e poesias líricas em tupi e a traduzir o pai-nosso.
Mais que isso: o único livro que padre Anchieta escreveu e viu ser editado foi um manual de tupi, intitulado "A arte da gramática da língua mais usada na corte do Brasil".
A morte do tupi foi decretada em 1758, quando o marquês de Pombal, ministro do rei dom José 1º, proibiu o ensino da língua no Brasil. "A língua portuguesa precisou ser imposta para ser de fato adotada. Naquele momento, perdemos a oportunidade histórica de ser um país bilíngue, como o Paraguai (onde além do espanhol, fala-se guarani)", diz Navarro.
Além de estudar a língua, o professor formará uma comissão de índios para nominar, em tupi, palavras "modernas". "Vamos ter de respeitar a língua e usar a criatividade. Por exemplo, não existe a palavra geladeira em tupi. Vou sugerir que se use, no seu lugar, mba'emoróysara (algo como "coisa de esfriar")", diz ele.
Navarro também prepara um dicionário de tupi para ser usado pelos futuros índios professores. "Será um instrumento para eles enfrentarem os novos tempos."


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