São Paulo, domingo, 27 de outubro de 2002

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TROCA

Para presidente, acordo rende apoio para a aprovação do foro privilegiado para ex-autoridades; por sua vez, o candidato petista à Presidência recebe uma espécie de aval internacional

FHC e Lula criam 'ponte para o futuro'

KENNEDY ALENCAR
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O presidente Fernando Henrique Cardoso e seu virtual sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), já fecharam um acordo de ajuda mútua para o futuro. FHC terá apoio de Lula para aprovar o foro privilegiado para ex-autoridades. E Lula, uma espécie de aval internacional de FHC.
Mais: confirmada a vitória de Lula hoje, a conversa do petista com FHC marcada para terça-feira será fundamental para a formação do novo ministério. Alguns cotados têm ligações com o PSDB e o próprio presidente. FHC "liberaria" essas pessoas a aceitar eventuais convites.
Se seguir um conselho do atual presidente, Lula não tardará a nomear o ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central do seu governo. Para FHC, o mercado ficará ansioso pelos dois nomes e poderá dar início a uma queda-de-braço com o PT antes mesmo da posse, marcada para 1º de janeiro de 2003.
A intenção de Lula é anunciar logo apenas a equipe de transição, mas o petista não descarta indicar o ministro da Fazenda e o presidente do BC se julgar necessário.
Uma hipótese é colocá-los para trabalhar desde já na equipe de transição. Além desses dois nomes fortes da economia, seriam indicados outros dois da política, como José Dirceu, presidente do PT, e Antonio Palocci, coordenador do programa de governo. Assim, o PT acha que o gesto não pareceria rendição ao mercado.
A Folha apurou que o próprio Lula falou secretamente com FHC por algumas vezes na eleição, mas a maioria dos contatos com o presidente ficou a cargo de Dirceu.

Foro privilegiado
Nas conversas com Dirceu, FHC pediu a garantia de que não será perseguido, com reabertura de investigações sobre atos de seus dois governos. Será atendido. Além disso, negociou com o PT a aprovação do foro privilegiado para ex-autoridades, regra que o STF (Supremo Tribunal Federal) derrubou em 1999.
Hoje, FHC só pode ser processado penalmente por iniciativa do procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, funcionário público indicado para o cargo pelo presidente da República.
As ações de natureza civil contra FHC começam na primeira instância da Justiça Federal. Existem cerca de 200 ações (entre populares e por improbidade administrativa) contra FHC -a maioria sobre o processo de privatização.
Sem o foro privilegiado, FHC poderá ser processado penal e civilmente em qualquer comarca do país. Ou seja, estaria sujeito à ação de juízes e de promotores de primeira instância.
Foi por intermédio de Dirceu que Lula e FHC costuraram esse acordo. "Um presidente da República não pode ser deixado ao relento", diz Lula em conversas reservadas. Detalhe: como o PT está prestes a virar governo, a prerrogativa será útil no futuro.

Transição e aval
Para FHC, a indicação rápida do ministro da Fazenda e do presidente do Banco Central de Lula permitiria a divisão imediata da responsabilidade sobre a economia. Isso tranquilizaria o mercado, crê FHC, e permitiria maior afinidade entre as duas equipes de governo, a atual e a futura.
O temor de FHC é que o mercado não se contente com a equipe de transição de Lula, por achar que terá de lidar com pessoas diferentes daqui a dois meses. Se ficar claro desde já quem tocará a área econômica, essa incerteza se dissiparia, e o dólar poderia cair, avalia o presidente.
A Folha apurou que esse assunto será tema do encontro de terça. "O Lula não pode errar no começo. Deve passar credibilidade e não pode começar com um duelo com o mercado", diz o presidente.
Nas conversas com a comunidade internacional, FHC já vem cumprindo o papel de avalista de Lula. Foi assim, por exemplo, que surgiu uma notícia no jornal argentino "Clarín", nas vésperas do primeiro turno, dando conta de que FHC dissera à comitiva do presidente do país vizinho, Eduardo Duhalde, que Lula venceria a eleição em 6 ou em 27 de outubro. Para não melindrar Serra, FHC negou o comentário.
Mas consta que, perante os argentinos que visitavam Brasília, FHC fez elogios a Lula, tratando-o como um político equilibrado, bem-intencionado e incapaz de arroubos que coloquem em risco a estabilidade monetária.
Nos próximos dois meses e no começo do governo Lula, FHC pretende continuar a transmitir confiança na gestão petista, o que soa contraditório com os recados domésticos do segundo turno para satanizar Lula e ajudar Serra.
"Mais do que ajudar o Serra, o presidente estava defendendo o governo dele. O PT também aumentou o tom contra o governo no segundo turno", diz um tucano amigo do presidente.
FHC pensa que uma derrocada econômica na transição ou no início do governo Lula seria debitada na sua conta, já que a vulnerabilidade externa da economia é sua herança mais perversa.
No aspecto político, FHC pretende fazer da transição uma inédita e exemplar demonstração de apreço à democracia e de elegância administrativa. Além do controle da inflação, o presidente atual acha que outra marca de sua gestão será a estabilidade política.
Nesse quesito, também já andou dando conselhos a Lula: "Um presidente precisa ter couro duro, para suportar as críticas, especialmente as injustas, que não são poucas", disse FHC a um petista.

Exterior e ONU
Vaidoso assumido, FHC se gaba do respeito internacional que ganhou nos dez anos de poder (dois anos como ministro da Fazenda e oito anos como presidente).
Depois de passar a faixa presidencial ao sucessor, pretende viajar para o exterior e descansar por um período de três meses. Em princípio, evitará entrar na política doméstica, seja interferindo na guerra que se prenuncia no PSDB, seja criticando o PT. FHC acha que o PT rapidamente tomará um choque de realidade, verá como é difícil ser vidraça e lhe dará razão a respeito de reivindicações não atendidas, como altos reajustes do salário mínimo. Só pretende dar alfinetadas se provocado.
Na agenda pós-governo, já estão marcadas viagens para Estados Unidos, França e Espanha, para palestras e passeios. Um encontro com o ex-presidente Bill Clinton é tido como certo.
Nesse período, FHC também pensará na resposta que dará ao convite do secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), Kofi Annan, para assumir uma das comissões da entidade. Já foi convidado e pode escolher a comissão que desejar.
No centro de São Paulo, o andar inteiro de um prédio, doado por empresários, será sede de um instituto dirigido por FHC. O presidente diz que pretende voltar "a pensar mais como sociólogo" e planeja escrever pelo menos um livro, misturando o balanço de seu governo com a experiência cotidiana da Presidência.
FHC tem gravações, anotações e documentos arquivados. Há a possibilidade de que divida a história de sua Presidência em dois livros. Um sairia entre 2003 e 2004. O outro, com informações que podem melindrar políticos e amigos, ficaria para mais adiante.
O cuidado se explica porque FHC não descarta o retorno à política em 2006. Atualmente, leva o assunto na brincadeira, mas já há aliados de Serra que sonham com a volta do atual presidente se Lula fizer um governo de frustração.
A respeito do futuro político, FHC pretende lançar uma semente, a do parlamentarismo. Como nunca deposita toda as fichas numa única aposta, a articulação parlamentarista será uma idéia que venderá como garantia de governabilidade. O seu perfil, muito mais para chefe de Estado do que para chefe de governo, cairia como uma luva se a semente der frutos e se ele estiver bem de saúde, como hoje. Em 2006, terá 75 anos.
Em assuntos do PSDB, FHC deverá ter interferência pequena. Antevê uma guerra entre serristas, que pretendem fazer oposição mais dura a Lula, e uma outra ala, capitaneada por Aécio Neves, governador eleito de Minas e presidente da Câmara, e Tasso Jereissati, senador eleito pelo Ceará. Aécio e Tasso preferem oposição light, linha mais parecida com a pregada por FHC.

Autocrítica eleitoral
Na estratégia montada dois anos atrás para eleger o sucessor, o PSDB cometeu dois erros graves, segundo admite o próprio FHC. Nas conversas reservadas, reconhece a sua cota de responsabilidade nos dois enganos.
O primeiro erro foi ter acreditado que bastaria um candidato do governo chegar ao segundo turno contra Lula para ter vitória assegurada. A articulação política, empresarial e de mídia do petista surpreendeu FHC.
O segundo erro é bastante específico: ter deixado o publicitário Duda Mendonça fechar contrato com o PT. Em 1999 e 2000, Duda chegou a falar com Andrea Matarazzo, então secretário de Comunicação Social, sobre 2002.
Duda, porém, se aborreceu com o descaso de Andrea e do próprio FHC, que preferiram não abrigá-lo no núcleo do poder para não melindrar Nizan Guanaes, marqueteiro das duas campanhas de FHC, conselheiro-mor do governo e atual publicitário de Serra.
"Foi um erro ter perdido o Duda. O PT nunca teve uma comunicação tão boa como nesta campanha. Fez a diferença", diz FHC.
Quando fala da iminente derrota de Serra, FHC prefere apontar a falta de carisma do candidato e um erro de marketing na estratégia de "venda do produto" a reconhecer que o alto desemprego e crise econômica gerada por sua política tolheria muito as chances de um postulante governista.
Quando veio a onda Ciro Gomes (PPS), entre julho e agosto passado, FHC passou a se equilibrar de vez entre Serra e Lula. Desagradou o seu candidato quando declarou que não era preciso diploma para ser presidente, num contraponto a uma crítica da propaganda de TV tucana ao petista.
O afago foi combinado com José Dirceu, bem como o apoio do PT ao novo acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional). Nessa época, FHC chegou a dar como morta a candidatura tucana, que variava entre 14% e 12% nas pesquisas. A partir de então, decidiu construir de vez com o PT uma sólida ponte para o futuro.
Em 19 de agosto, dia em que recebeu os quatro principais presidenciáveis, fez deferência especial a Lula. O petista foi o único convidado para uma conversa a sós. FHC elogiou a moderação do petista na campanha e deixou claro que, se Serra não chegasse ao segundo turno, jamais votaria em Ciro. Para Lula, foi quase uma declaração de voto.
O petista julga "exemplar e democrático" o comportamento de Fernando Henrique na eleição. Diz que não houve abuso da máquina, nem jogo baixo.


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