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Maria Prestes fala da tentativa do líder comunista, que faria 100 anos no próximo dia 3, de se aproximar do PT
Viúva descreve últimos anos de Prestes
JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local
Luiz Carlos Prestes (1898-1990)
estaria completando 100 anos no
próximo dia 3. Foi um dos poucos
personagens que entraram para a
história por mais de uma porta.
Primeiro, como chefe da coluna
tenentista que levou seu nome
(1925-1929). Ele procurou inutil
mente levar o Exército a suble
var-se contra a República Velha,
ao marchar 25.000 km pelo inte
rior do país.
A seguir como chefe do Partido
Comunista (1934-1980), pelo qual
liderou em 1935 uma fracassada
rebelião, a Intentona. Foi senador,
comandou a mais forte máquina
sindical pré-1964, viveu no exílio e
foi excluído do PCB em 1980.
Sua segunda mulher, Maria
Prestes, 67, nasceu com o nome de
Altamira Rodrigues Sobral. Pas
sou a se chamar Maria do Carmo
Ribeiro para se proteger da polícia,
ao acompanhar o marido nos anos
de clandestinidade.
É a mãe de sete de seus oito fi
lhos. Ela relata à Folha a rotina dos
últimos anos de um octogenário
que viveu o bastante para assistir o
desmoronamento do mesmo co
munismo pelo qual se bateu.
Folha - Como Prestes se adaptou
à não-clandestinidade, quando
voltou com a Lei da Anistia?
Maria Prestes - Já havíamos vi
vido um período assim, entre o go
verno Kubitschek e o golpe de 64.
Naquela época, ele até me visitou
na maternidade quando dois de
nossos filhos nasceram.
Folha - Ele reagiu mal à contesta
ção de sua liderança no PCB?
Maria - Já havia divergências
sérias no partido. Ele ficou mais
isolado. Ele queria ficar estudando
a nossa realidade.
Folha - Como era seu cotidiano?
Maria - Moramos primeiro per
to do Arpoador. Depois mudamos
para um apartamento que havia si
do do João Saldanha, no Leblon. E
em seguida fomos morar na Gá
vea. Nos tempos do Leblon e da
Gávea, sempre fazíamos longos
passeios a pé, de manhã ou de tar
de, por 40 minutos, uma hora.
Folha - Ele era reconhecido?
Maria - No Leblon, ele era reco
nhecido com frequência e nos pa
ravam muito na rua para conver
sar. Na época da Gávea, íamos an
dar em São Conrado, que era mais
tranquilo.
Folha - Nunca chegou a cruzar
um adversário do comunismo que
fosse indelicado com ele?
Maria - Isso nunca aconteceu.
Pelo contrário. Sempre eram pes
soas que sorriam.
Folha - Como foi a noite em que
ele voltou para casa excluído do
Comitê Central? Ele ficou muito
abatido, cabisbaixo?
Maria - Essa separação já havia
ocorrido em Paris, em 1979. Ele
permanecia como secretário-geral
porque o partido não o expulsou.
Foi ele quem tomou a decisão de se
afastar dos companheiros.
Folha - Ele não se deprimiu nem
quando Giocondo Dias o substi
tuiu como secretário-geral?
Maria - Não ficou magoado,
não. Ele dizia que vivíamos numa
democracia e que a maioria deve
ria dar os rumos ao partido. Ele só
repetia: "Eu não participarei".
Folha - Mas a partir de então a
rotina dele mudou.
Maria - O Prestes já era um ho
mem escolado pela vida. Não era a
primeira vez em que ele ficava em
minoria. Já na época da coluna isso
havia acontecido. Ele era um ho
mem realista.
Folha - Nos últimos anos, ele che
gou a dizer que sentia saudades da
Rússia, que queria rever Moscou?
Maria - Vivemos dez anos em
Moscou. Foi um período muito fe
liz para a família.
Folha - Ele tinha saudades do
apartamento ou da comida de lá?
Maria - Todos nós sentimos
saudades dos lugares em que fo
mos felizes. Ele voltou comigo
uma vez a Moscou, em 1984. A vida
cultural que tínhamos por lá era
muito intensa.
Folha - Prestes falava russo com
muito sotaque?
Maria - Ele só falava algumas
palavras do russo. Ele gostava de
falar francês.
Folha - Ele pedia para a sra. fazer
no Rio algum prato que ele gosta
va de comer na Rússia?
Maria - Ele adorava a sopa de
beterraba, o borsh, e estrogonofe.
Folha - O estrogonofe feito no
Brasil não é parecido com o russo?
Maria - Não, não é. A carne é
diferente. E aqui precisamos colo
car o creme de leite em conserva. O
de lá é o creme de leite fresco. Ele
também gostava muito das tortas.
Havia uma torta de Kiev com sus
piro que ele adorava.
Folha - Quando morava por lá,
ele sentia saudades de doce de lei
te, rapadura, goiabada?
Maria - Lá, comíamos comida
brasileira. Eu é quem fazia. Ele
gostava muito de ambrosia. Ele
gostava de goiabada com queijo.
Todas as vezes que alguém nos vi
sitava ele pedia de presente uma la
ta de goiabada.
Folha - Ele ajudava a sra. a tomar
conta das crianças?
Maria - Ele adorava os filhos e
os netos. Muitas vezes voltava para
casa com balas de chocolate para
todos. Ajudava a trocar a fralda
dos pequenininhos, dava comida
na boca, fazia mamadeira. Gostava
de fazer biscoito para as crianças.
Folha - Ele tinha alguma "espe
cialidade" na cozinha?
Maria - Ele adorava fazer salada
de frutas. Em Moscou, ele ficava
na fila para comprar abacaxi e ba
nana para reparar a sobremesa.
Folha - A sra. disse que ele lia em
francês. Do que ele gostava?
Maria - Ele lia os romances clás
sicos, Balzac, La Fontaine. Mas
também Gramsci, em tradução
francesa. Lia também em portu
guês. Gostava de Machado de As
sis, Castro Alves, Graciliano Ra
mos e dos primeiros romances do
Jorge Amado.
Folha - Jorge Amado chegou a
frequentar sua casa no Rio?
Maria - Não. Aqui, no Rio, ele
nunca veio.
Folha - Como era a vaidade de
Prestes ao se vestir?
Maria - Ele foi sempre um ho
mem muito simples. Quando ga
nhava uma camisa no aniversário,
dizia: "Não tenho tempo para gas
tar tanta roupa, não". Ele gostava
de ter um terno bom. Mas ele se
preocupava mesmo era com um
bom par de sapatos. Quando ía
mos viajar, ele sempre engraxava
os sapatos no aeroporto.
Folha - Quando o comunismo
acabou na Europa, Prestes ainda
estava vivo e assistiu muita coisa
pela televisão. Como ele reagiu?
Maria - Ele assistiu pela televi
são o julgamento do (Nicolae)
Ceausescu (ditador romeno de
1965 a 1989). Comentou comigo:
"A crise é mais grave do que eu
imaginava". O que mais o abalou
foi a Alemanha (então Oriental).
Tinha muita afinidade com diri
gentes como o Honecker.
Folha - O que o abalou?
Maria - Foram as notícias de
que Honecker estava envolvido
com dinheiro depositado fora do
país. Ele ficou muito chocado. O
Ceausescu nós conhecíamos.
Folha - No caso da Rússia a sur
presa foi menor?
Maria - O velho sabia que have
ria mudanças. Ele gostava do (Mi
khail) Gorbatchov (último líder
soviético). Havia uma abertura pa
ra os problemas internos do país.
Mas houve precipitação.
Folha - O que ele disse sobre a
queda do Muro de Berlim?
Maria - Ele disse mais ou menos
o seguinte: "Eu não sei o que vai
acontecer. Mas é lamentável que
tudo isso tenha acontecido dessa
maneira".
Folha - Voltemos para o fim da
vida dele no Brasil. Houve um pe
ríodo em que ele tentou se aproxi
mar do PT, mas o PT o rejeitou.
Maria - Não foi bem assim.
Muitos dos que fundaram o PT ti
nham sido comunistas. O velho
achava que o PT poderia ser um
grande partido, mas que não tinha
quadros que estudassem a realida
de brasileira.
Folha - O que ele achava do Lula?
Maria - Para ele, o Lula era um
quadro excelente, que tinha prestí
gio. Mas o velho lamentava muito
porque ele não estudava. O Lula, o
velho dizia, não passava nunca das
primeiras 17 páginas de um livro.
Até hoje o Lula tem raiva do Pres
tes por causa dessas críticas.
Folha - Raiva?
Maria - Nós o convidamos para
dar um depoimento no filme "O
Velho", e ele se negou. Eu sou ad
miradora do Lula. Mas acho que
ele tem de romper um pouco com
esse sectarismo.
Folha - Nas eleições de 1989, por
que Prestes fez a campanha de
Leonel Brizola, e não a de Roberto
Freire, o candidato do ex-PCB?
Maria - O velho estava indife
rente. Já estava fora do partido.
Folha - Nos últimos meses de vi
da, Prestes assistia à TV?
Maria - Assistia. Ele não perdia
os telejornais, debates, programas
de entrevista. Era um homem que
lia sete jornais por dia, lia as revis
tas. Recebia e respondia muita
correspondência.
Folha - Para a sra., pesou o fato
de ter sido a mulher de Prestes de
pois de Olga Benario?
Maria - Tudo aconteceu com
muita naturalidade.
Folha - Por que a sra. nunca foi
casada no papel com Prestes?
Maria - Até que nos últimos
anos ele queria, para legalizarmos
a situação, por causa das crianças.
Mas eu nunca quis.
Folha - Ele voltou a acreditar em
Deus no fim da vida?
Maria - Não. Ele dizia que
"acreditar em Deus é uma hipóte
se desnecessária".
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