São Paulo, segunda-feira, 27 de dezembro de 2004

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ENTREVISTA DA 2ª

SÉRGIO RENAULT

Responsável pela promoção da reforma do Judiciário diz que lentidão beneficia pessoas poderosas

Para secretário, Justiça precisa deixar de ser um "bom negócio"

UIRÁ MACHADO
DA REDAÇÃO

O mau funcionamento do Judiciário no Brasil beneficia algumas pessoas e empresas poderosas -até mesmo o governo- e, por isso, "as coisas permanecem como estão". É um "bom negócio" que precisa deixar de existir.
A avaliação é de Sérgio Renault, secretário da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça. Ele afirma que a lentidão da Justiça favorece quem não quer resolver suas dívidas e torna vantajoso ter uma ação judicial.
"A utilização do Judiciário não pode ser um bom negócio. A utilização do Judiciário deve ser para que as pessoas possam defender ou perseguir os seus direitos."
Renault, que se diz "muito contente com a atuação da secretaria" e critica a falta de empenho de governos anteriores para aprovar a reforma do Judiciário, afirma que as mudanças na Constituição Federal (que modificam o funcionamento da estrutura judicial e criam o controle externo, entre outras) e na legislação processual (que visam combater a lentidão da Justiça) atendem a dois interesses fundamentais: o da cidadania e o da economia.
O secretário afirma, no entanto, que a melhoria do Judiciário não virá de uma atitude isolada e que não se pode imaginar "uma solução mágica". A solução vem, diz ele, de uma "série de medidas tomadas em conjunto". A reforma processual é uma delas. Renault espera que esteja aprovada já no primeiro semestre de 2005.
 

Folha - Avalie a atuação da Secretaria de Reforma do Judiciário.
Sérgio Renault -
Eu estou muito contente com a atuação da secretaria. Nós conseguimos cumprir um papel que justificasse a sua criação. Houve uma resistência muito grande quando ela foi criada, havia uma incompreensão de parte da magistratura sobre a necessidade de se criar uma secretaria como essa.
Eu acho que nós conseguimos demonstrar que havia sim um papel a ser cumprido pelo Executivo, como alguém que pudesse intervir na discussão sobre a reforma e outros assuntos relacionados à melhoria do Judiciário. Foi um papel de indução de iniciativas de novas propostas, de interlocução com outros setores.
A aprovação da reforma constitucional foi um fato importante. A entrada do governo nessa discussão, na minha análise, foi o que permitiu sua aprovação -tanto é que o projeto vinha sendo discutido havia anos.

Folha - Faltou empenho nos governos anteriores?
Renault -
Eu acho que faltou, sim. Faltou estabelecer a reforma do Judiciário como prioridade. Nenhum governo fez isso.

Folha - A quem interessa a reforma do Judiciário?
Renault -
Eu acho que interessa à cidadania, às empresas, aos investidores, a todos aqueles que dependem ou se relacionam com o Judiciário. Um melhor funcionamento do Judiciário é uma questão fundamental para o desenvolvimento do país.


[A reforma] interessa à cidadania, às empresas [...] Um melhor funcionamento do Judiciário é fundamental para o desenvolvimento do país


Há um interesse democrático, do ponto de vista de reafirmação da cidadania, mas há um interesse que tem a ver com a economia, que tem a ver com o custo Brasil, com a fuga de capitais, com a possibilidade de as empresas terem maior previsibilidade das decisões judiciais, de terem condições de fazer investimentos sabendo que o mau funcionamento do Judiciário não é um empecilho.
Acho que os dois interesses fundamentais que podem ser identificados são esses: um é o da cidadania e o outro é o da economia.

Folha - Um Judiciário que funciona é o quê? É um Judiciário rápido, previsível ou que faz justiça?
Renault -
Acho que as três coisas. Tem de ter maior previsibilidade, tem de ter rapidez e simplicidade e tem de ser menos excludente -no sentido de ser mais acessível. Hoje não temos isso. O volume de processos é muito alto, mas esse volume está concentrado nas mãos de poucas empresas, que são as grandes empresas.

Folha - Como fazer para tornar o Judiciário um órgão previsível?
Renault -
As regras do jogo têm de estar mais claras, mais fáceis de serem compreendidas. A previsibilidade deve decorrer de uma maior racionalidade da legislação que regula os procedimentos judiciais. Isso em termos de tempo e em termos de resultados. Principalmente em termos de tempo. O tempo da tramitação dos processos tem de ser um tempo uniforme, e as decisões, justas e economicamente viáveis.

Folha - Não há um problema estrutural que pode impedir a reforma de dar certo?
Renault -
A reforma -e a melhoria do Judiciário- não virá de uma atitude isolada. Ela vem de uma série de medidas tomadas em conjunto. A questão é que nós estamos tomando também outras medidas que se relacionam com o processo inteiro, que devem fazer com que os processos tramitem com maior rapidez e descongestionem um pouco os tribunais.
O problema é o volume de processos, é a demora na tramitação, a lentidão, a falta de informatização que temos em São Paulo, por exemplo. O que não se pode imaginar é uma solução mágica.

Folha - Com relação à reforma processual, quais são os objetivos da secretaria?
Renault -
Os objetivos fundamentais são trazer maior rapidez à tramitação dos processos, dar maior efetividade às decisões de primeiro grau e punir ou impedir uma utilização predatória do Poder Judiciário.
Essa demora do Judiciário tem uma certa utilidade. Isso beneficia as pessoas que não querem pagar, não querem resolver ou querem protelar suas dívidas etc. A utilização do Judiciário não pode ser um bom negócio. A utilização do Judiciário deve ser para que as pessoas possam defender ou perseguir os seus direitos.

Folha - Como isso será feito?
Renault -
Com disposições referentes à simplificação dos recursos, criando-se impedimentos a que os recursos tenham essa utilização meramente protelatória. Também há medidas que visam à simplificação de procedimentos. Tem a punição e criação de artifícios para que as pessoas que se utilizam dessa maneira predatória do Judiciário sejam punidas. Nosso desafio, aí, são dois: simplificar o sistema e garantir o direito de defesa das pessoas.

Folha - Na reforma constitucional, buscou-se a cidadania e a economia. Podemos dizer que essa reforma processual está mais a serviço do cidadão comum?
Renault -
Ela também está a serviço das empresas que cumprem suas obrigações. Essa é a questão fundamental. Ela tem um impacto na cidadania, de acesso, de utilidade, de simplificação mas tem também um impacto econômico na medida em que ela tende a ter um resultado positivo do ponto de vista do crédito no Brasil.
Hoje, o que nós sabemos é que, na composição dos juros bancários, do custo do dinheiro, essa questão da demora na captação de dinheiro e de obtenção de resultados efetivos na recuperação do crédito tem um impacto. A demora, a lentidão na Justiça, a complicação, a complexidade que se tem para se obter resultados têm um impacto econômico.

Folha - Muitas empresas e muitos bancos se aproveitam dessa lentidão do Judiciário quando estão em litígio com uma parte mais fraca que não suporta uma longa demanda judicial. Não há o risco de haver um lobby para serem aprovados apenas os dispositivos que beneficiam essas empresas?
Renault -
Acho que não. Nós estamos num movimento muito amplo para viabilizar essas ações. Acho que não há condições de levantar essa bandeira publicamente no Brasil. Seria uma vergonha. Essa utilização do Judiciário com o objetivo de se ganhar dinheiro não deve ocorrer.


A utilização do Judiciário não pode ser um bom negócio. A utilização deve ser para que as pessoas possam defender ou perseguir os seus direitos


Mas você tem razão. Muitas vezes o banco ou a empresa se vale disso. Acaba sendo um bom negócio ter uma ação judicial. Isso tem de deixar de existir. Esse componente de bom negócio é que se deve retirar dessa relação judicial. É ruim para o Brasil e para o Judiciário. Só traz benefício para algumas empresas, para algumas pessoas.
É importante deixar claro que o mau funcionamento do Judiciário tem uma certa utilidade, beneficia algumas pessoas. E é por isso certamente que as coisas permanecem como estão, porque são pessoas poderosas. Muitas vezes, envolve até o interesse do governo. É uma luta importante porque tem a ver com o aperfeiçoamento da democracia, das instituições.

Folha - Um dos pontos da reforma trata da utilização de muitos recursos. Estabelece multas, por exemplo. Mas o governo é um dos maiores litigantes.
Renault -
O que se pretende em relação ao governo é a mesma coisa que se pretende em relação aos demais. É tirar esse componente de bom negócio. O que se pretende é tirar o componente de irracionalidade e de bom negócio que é o recurso no Judiciário.
Nesse sentido, o tratamento que está sendo dado à iniciativa privada é o mesmo que está se dando à administração pública. Isso é positivo. Não vejo razão nenhuma para se dar um tratamento privilegiado à administração pública nesse sentido.

Folha - Um artigo fala em aumentar em até 50% o valor da causa ou da condenação nos casos de utilização de ações contra o mesmo réu. Não é muito oneroso?
Renault -
É para ser oneroso, mesmo. É para desestimular. O objetivo aqui é punir violentamente. As penalidades que estão sendo previstas são altas exatamente porque têm de ser altas o suficiente para se tornar desestimuladoras desse tipo de procedimento. É uma tentativa de fazer com que essa postura deixe de ser vantajosa.

Folha - A reforma processual, ao contrário da constitucional, que foi feita por emenda, está sendo feita por uma série de projetos de lei. Como a secretaria vai agir para garantir a aprovação do conjunto?
Renault -
O que é importante que se diga é que, nesse momento, estamos diante de um conjunto de propostas de uma amplitude muito grande e apresentadas de uma forma como nunca se fez. A novidade é essa. A expectativa que nós temos é que isso viabilize a aprovação dos projetos.
Vai ser criada uma comissão mista com senadores e deputados, já estamos em entendimento nesse sentido, para mostrar o empenho do governo nessa aprovação. O empenho do governo deve facilitar a aprovação.
A expectativa que nós temos é que, pela atuação do governo, pela prioridade que o governo está dando e pela sensibilidade que eu percebo em alguns deputados e senadores em relação a isso, eu acho que a possibilidade de aprovação do conjunto é bastante grande. Isso ainda no primeiro semestre de 2005.

Folha - Uma vez aprovados os projetos, qual o próximo passo da secretaria?
Renault -
Nós temos alguns outros projetos. Esse conjunto não esgota a necessidade de modernização e atualização processual. Temos outras propostas em estudo relativas ao processo. Temos uma atuação ainda grande com relação à modernização da gestão. Tivemos a reforma constitucional, a processual, e tem a da gestão. Precisamos modernizar a gestão, que é fundamental para que tenhamos um Judiciário adequado ao nosso tempo. O acompanhamento da Constituição e da entrada em funcionamento do Conselho Nacional de Justiça são também atividades essenciais.


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