São Paulo, quinta-feira, 28 de junho de 2001

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Fila por comida é rotina no sertão de PE

RICARDO KOTSCHO
ENVIADO ESPECIAL A PERNAMBUCO

Antes de o dia clarear, duas dezenas de caminhões paus-de-arara começaram a encostar em frente à Biblioteca Municipal de Calumbi, às margens da PE 320, a 410 km do Recife, próximo a Serra Talhada, trazendo o povo da roça para receber comida.
O ritual, que se repete há quatro anos, uma vez por mês, já faz parte da rotina do local. Mas, havia dois meses, ele tinha sido interrompido porque o governo federal deixara de mandar as cestas básicas que seriam distribuídas para 950 famílias cadastradas.
Ontem foi dia de festa. Calumbi foi o primeiro dos 56 municípios em estado de calamidade no sertão de Pernambuco a receber comida depois das medidas de combate à seca anunciadas pelo governo federal na semana passada.
Sob uma chuva fina e intermitente, que os sertanejos chamam de neblina, imensas filas de agricultores carentes aguardavam a abertura do portão da biblioteca, às 7h. Para evitar tumultos, o secretário de Agricultura de Calumbi, José Soares de Lima, mobilizou 12 funcionários da prefeitura e um carro de polícia.
Quase metade da população da cidade, de 7.050 habitantes, depende das cestas básicas para sobreviver desde o final de 1996, quando a seca começou e não acabou mais. Agora, com o agravamento da seca, o prefeito Cícero Simões de Lima (PPS) já pediu ao governo federal o envio de mais 350 cestas por mês.
As mulheres eram maioria absoluta na fila. Segurando o filho de um ano no colo, Gildete Bonfim do Nascimento, 20, parecia ter ganhado na loteria ao carregar na cabeça a cesta com 13 kg de alimentos: arroz, feijão, farinha, fubá, açúcar, sal, óleo e uma lata de carne em conserva.
Francisco Sebastião Magalhães, 53, dono de 35 hectares de terra de onde não colheu nada neste ano, nem dormiu à noite com medo de perder o caminhão que saiu de madrugada de Rocas Velhas, levando 40 lavradores que pagaram R$ 1 para ir à cidade. Ele já enfrentou as secas de 58, 70, 73 e 93 e garante que esta é a pior.
Além de garantir a sua cesta, Antonio José da Silva, 28, tinha outro desafio. Convencer os funcionários da prefeitura a lhe entregarem também a cesta do seu vizinho Sebastião Severino de Lima, que não pôde vir porque sua mulher estava doente.
Às 9h, a fila ainda parecia grande demais para as poucas cestas que sobravam no estoque de 16 toneladas. É que muita gente arriscava a sorte, mesmo sem estar cadastrada. "O pessoal fica teimando para ver se sobra alguma coisa", explica o secretário José Soares de Lima.
A polícia não teve trabalho. Em silêncio, as pessoas esperavam sua vez na fila, conformadas. Ao pé da serra dos Cariris Velhos, onde até o mandacaru está secando, o lavrador Antonio José dos Santos, que espera o nascimento do terceiro filho, habituou-se a viver de favor, mas não pensa em ir embora. Ele vive da ajuda que recebe do sogro e do governo. "Dá vergonha receber comida dos outros, mas é o jeito, não tem outra opção. Às vezes, penso em ir embora, mas lá em São Paulo é pior."


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