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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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ENTREVISTA

Ex-presidente da SBPC, Sérgio Ferreira, que apoiou Lula, critica programa de alfabetização e política econômica

Cientista vê "marketing vagabundo" do PT

JOSÉ ALBERTO BOMBIG
ENVIADO ESPECIAL A ÁGUAS DE LINDÓIA

Um dos principais nomes do grupo de cientistas que em outubro do ano passado formalizou apoio à candidatura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o médico e farmacólogo Sérgio Ferreira, 68, diz que falta "transparência" ao Ministério da Ciência e Tecnologia, critica a atual política econômica e chama o plano de alfabetização do governo federal de "marketing vagabundo".
Ex-presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), Ferreira defende a substituição de Cristovam Buarque (Educação) e diz que, caso Roberto Amaral (Ciência e Tecnologia) não "aceite a responsabilidade da transparência", também deve ser trocado.
Em 1965, o cientista descobriu no veneno de uma cobra jararaca substâncias que permitiram grandes avanços no combate à hipertensão. Os resultados da pesquisa deram a ele notoriedade no Brasil e no exterior e o transformaram em uma das maiores autoridades da farmacologia mundial.
Ferreira, em sua gestão na SBPC (1995-1999), enfatizou a divulgação científica, especialmente entre as crianças, contra o que chama de "analfabetismo científico". Para ele, o programa Brasil Alfabetizado, lançado pelo governo federal neste mês, não estimula a curiosidade e é um retrocesso. "Esse projeto ensina a ler e pronto. Saber ler é saber interpretar."
Em Ribeirão Preto, onde leciona na USP, o cientista criou, com um grupo de intelectuais e personalidades de diferentes área, o Templo da Cidadania, espaço voltado para a divulgação e discussões de questões sociais que tem entre seus "sócios" o ministro Antonio Palocci Filho (Fazenda), ex-prefeito da cidade paulista.
Apesar da proximidade com o ministro, Ferreira afirma que o modelo econômico atual tem aumentado as desigualdades sociais. "A gente está pagando, está economizando, e a pobreza está aumentando. A resolução do FMI não serve para nós. A gente tem que sair desse esquema que parece inexorável."
Leia a seguir a entrevista, concedida à Folha, na última terça-feira, durante um encontro nacional de farmacologia em Águas de Lindóia (SP).

Folha - A ciência e a pesquisa no Brasil passam por um momento de grave crise?
Sérgio Ferreira -
Nós temos que entender que crise em ciência, no momento atual ou na última década, sempre representou falta de dinheiro. Mas o maior problema é saber se existe uma política científica para o Brasil e se existe, em paralelo, uma política de desenvolvimento tecnológico. Nós estamos fazendo de 6.000 a 10 mil doutores por ano. A grande pergunta é: onde é que eles vão parar? Por que nós estamos fazendo ciência no Brasil?
Uma primeira parte é para educar a pensar cientificamente, educar a universidade a pensar. Essa primeira etapa começou realmente após a Segunda Guerra Mundial. Não foi a universidade que começou a fazer ciência no Brasil, inclusive ela sempre foi meio contra a ciência no país. Um exemplo típico foi no golpe de 1964, em que aproveitaram para mandar para o inferno quem estava fazendo boa ciência no Brasil. Ocorre, porém, que a visão do desenvolvimento tecnológico no país nunca avançou, e a culpada não é a universidade, são as indústrias, que nunca tiveram a característica de produzir seu próprio desenvolvimento.

Folha - Até que ponto o contingenciamento de verbas é prejudicial aos cientistas e ao país?
Ferreira -
Os economistas brasileiros são contra a ciência, acham que ela não vai servir para nada. Da mesma forma que acham que a nossa economia tem que servir apenas para pagar as dívidas do país. A visão nunca é voltada para resolver a curva de pobreza do Brasil. A gente está pagando, está economizando, e a pobreza está aumentando. A resolução do Fundo Monetário Internacional não serve para nós. A gente tem que sair desse esquema que parece inexorável.

Folha - O sr. esperava mais do atual governo?
Ferreira -
O PT recebeu um país como o recebeu o governo anterior, em uma democracia de corporações. Ele está muito mais interessado na manutenção do poder político do que na ideologia. E para poder manter o poder ele tem que definir governabilidade, o que significa assumir plataformas semelhantes às dos outros governos. Se a gente esperava uma mudança rápida, isso não pôde ocorrer pela própria dinâmica da democracia corporativa. Essa mudança vai ocorrer no futuro? É a grande questão. Qual era o compromisso social do PT? No fundo, é quase um retorno ao nacionalismo, que há dois anos era um palavra feia. Mas sou corintiano, aprendo com as derrotas e acredito até o fim.

Folha - Que nacionalismo é esse?
Ferreira -
Um nacionalismo que vai ter que reestruturar a visão da indústria. Você imagina um país abundante em açúcar e em produtos cítricos, mas onde o ácido cítrico é importado e a glicose para a medicina também. Todos nós sabemos que medicamento é segurança nacional. Nós vamos ter de nos opor. Impossível ter um país em que visão de industrialização é montagem de automóvel, é zona franca onde se monta radinho. Isso não é indústria, é safadeza pura onde existe manipulação de capitais. Alguém está fazendo algum motor novo? O que é que os cientistas estão pedindo? Primeiro, um traçado de uma política econômica que incorpore a produção da inovação. Para isso, serão necessárias medidas que vão afetar o comércio internacional. Para isso, é preciso fazer coisas para o próprio país.

Folha - O sr. acha que o governo está seguindo esse caminho?
Ferreira -
Eu acho que falar em Fome Zero é uma bobagem. Nós devíamos empatar o nosso dinheiro para resolver o problema da sede, que traria trabalho e produção. Agora, tem que ser água para o povo trabalhar, e não para as aristocracias rurais, como foram os grandes projetos da Sudene. A Sudene voltou, mas a que tipo de solução ela está voltada?

Folha - O que querem os cientistas?
Ferreira -
Se nós pegarmos a verba do Ministério da Ciência e Tecnologia, de mais ou menos R$ 600 milhões, nós vamos ver que o governo passado deixou uma dívida de R$ 400 milhões. A quantidade de dinheiro para redistribuição é extremamente pequena, o que pode causar desvios, como puxar projetos que eram fundamentalmente do governo federal para associações como as FAPs [Fundações de Amparo à Pesquisa] estaduais. Por exemplo, você pega o Pronex [Programa de Apoio a Núcleos de Excelência], que era um plano no qual você tinha alguns laboratórios associados e um investimento na associação de centros de grande atividade com centros emergentes. Ao passar o Pronex para as FAPs, imediatamente não é mais Pronex. Nós, em São Paulo, não podemos mais comprar materiais para enviar para outros Estados. Na verdade, a Fapesp, por exemplo, deu um passa-moloque. Pegou o dinheiro do governo, mas vai colocar um dinheiro que não será um Pronex verdadeiro.

Folha - O sr. é um dos mais duros críticos do projeto Genoma, da Fapesp...
Ferreira -
Esses projetos induzidos pelas financeiras nós não conhecemos bem como andam. Somos profundamente contrários a esses processos de indução grandes e intermináveis, que não têm um ponto definido de término, que envolvem uma grande compra e distribuição de material. O projeto do Genoma é um projeto de desenvolvimento tecnológico que poder ser feito de várias maneiras. Até que tecnicamente deu certo. Mas eu pergunto: US$ 5 milhões para publicar um "paper" na "Nature" sobre o amarelinho? O que é isso? Agora vai existir o projeto do proteoma.
Vão comprar um monte de máquinas que vão ter que ser mantidas com projetos que não têm significado nenhum. Se nós queremos fazer desenvolvimento de medicamentos, implicaria primeiro em encontrar um alvo, o que queremos resolver. É isso que nós estamos desaprendendo.

Folha - O sr. acha que o CNPq e o governo estão corretos em estimular a participação das FAPs?
Ferreira -
Nós sempre fomos a favor de que o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] criasse projetos para estimular as FAPs. O que nós tínhamos que fazer era a recriação das FAPs em vários lugares, como no Rio Grande de Sul e no Maranhão, onde elas sumiram. Nós não somos contrários a essa aparente pulverização do dinheiro, desde que fossem recriadas as FAPs. Agora, se não forem, e se esse dinheiro for para o governo ou para qualquer instituição que não tenha um feedback da comunidade científica, ele vai desaparecer e não servir para nada. Além disso, pura e simplesmente mandar o dinheiro para regiões em que não há pesquisas achando que ele por si só fará pesquisa é besteira.
Pesquisa se faz com dinheiro e com gente que tem cultura. É preciso um ambiente para isso. Os reitores querem o dinheiro, mas duvido que em muitas universidades do Brasil exista ambiente para fazer cultura. O CNPq tem consciência disso.

Folha - O que seria necessário, em termos de modelo educacional, para criar esse ambiente?
Ferreira -
É preciso mudar profundamente os sistemas universitário, secundário e primário de educação. A única forma de ensinar é ensinar a aprender. Não adianta dar pronto o conhecimento porque ele vai emburrecer o estudante. O problema para reeducar cientificamente um país é não permitir que a curiosidade de suas crianças e de seus jovens seja destruída. As coisas que temos hoje de educação dão quantidade e acabam com a curiosidade. Nós pegamos os indivíduos nas universidades e os transformamos em autônomos, vendedores de medicamentos e utilizadores de aparelhos que usam sem ter nem a curiosidade de como foram feitos, simplesmente querem ganhar seu dinheirinho.

Folha - O sr. trabalha em Ribeirão Preto, cidade do ministro da Fazenda...
Ferreira -
Ele faz parte do Templo da Cidadania que fundamos lá. No Ministério da Fazenda nós temos vários que são do Templo, mas agora que eles entraram lá não têm aparecido. Nem para tomar cerveja. A economia é a única ciência cujos fatos não têm importância nenhuma. Portanto, eu posso ter a minha opinião: acredito que se pudesse haver outro modelo em que pudéssemos diminuir o volume de recursos destinado ao pagamento das dívidas, seria interessante.
Os EUA pagaram dívidas com o Brasil, no pós-guerra, em espécie. Eu penso que, se devemos e já pagamos nossas dívidas várias vezes, deveríamos criar um empório dos nossos artigos e quem quisesse receber viesse aqui buscar. Assim poderíamos vender o nosso aço para os EUA e eles não poderiam reclamar.

Folha - O sr. acha que na reforma ministerial que deverá ocorrer até o final do ano o ministro da Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral, deveria ser trocado?
Ferreira -
Eu acho que até agora uma das grandes mudanças deveria ser no Ministério da Educação, onde o ministro não sabe entender nem a política que ele propõe para o país, que afeta profundamente o desenvolvimento científico. Ele não entende nem o que são revistas internacionais, o que é Capes, mistura coisas na cabeça. Fez uma proposta de alfabetização que é um verdadeiro absurdo. Alfabetização não é ensinar a ler, é processo altamente complicado. Esse projeto ensina a ler e pronto. Saber ler é saber interpretar.
Essa idéia de que é só ensinar a ler não passa de um marketing vagabundo de um ministério. Quanto ao Ministério de Ciência e Tecnologia, estou pagando para ver. O grupo de pesquisadores que está lá é muito bom, herdaram muitas dificuldades do ponto de vista econômico. A administração dos fundos oriundos da privatização poderá ser o grande motor do desenvolvimento científico e tecnológico. O mais importante é que o ministro aceite a responsabilidade da transparência e de fazer previsões. A equipe dele pertence à Academia Brasileira de Ciências.
Eu não sei quanto uma eventual mudança poderia alterar. Mas acho que a visão pode ser alterada. A sociedade quer participar e ver o que está acontecendo. Isso vale também para as FAPs e para o ministério. Agora, no caso do ministério, é necessário que eles digam qual é a política de desenvolvimento tecnológico do país. Sem isso, mudem o ministro.


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