São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2004

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JANIO DE FREITAS

Entupimento total

Ainda que não houvesse incontáveis e infindáveis realidades sociais e econômicas a negar a democracia no Brasil, a maneira libertina como se fazem leis, também elas incontáveis e infindáveis, só difere da maneira ditatorial por uns quantos disfarces. Estes, por sua vez, protegidos pelos cuidados com que esse tema é eventualmente abordado. Mas a situação é simples: leis são impostas no Brasil, em quantidades torrenciais, à revelia da sociedade, sem apreciação legítima pelo Congresso e à margem da isenção devida pela cúpula do Judiciário.
A meio da semana espipocou no Congresso uma histeria retardada, com a culminância do entupimento provocado por 19 medidas provisórias pendentes da votação, sem a qual não pode haver votações de projetos. O Senado depende da Câmara e o plenário da Câmara não trabalha há uns quatro meses.
Em relação à democracia, porém, não haveria maior diferença se Câmara e Senado estivessem votando, fossem MPs ou projetos. As medidas provisórias, que a Constituição só autoriza para remediar necessidades de "relevância e urgência", apesar disso têm jorrado das mãos dos presidentes civis, exceto apenas Itamar Franco, com o mesmo ímpeto e a mesma desfaçatez dos decretos-leis atirados pelos generais-ditadores. Logo de saída, o permanente crítico das MPs de Sarney, Fernando Henrique Cardoso, estabeleceu sua embocadura definitiva para as provisórias com este exemplar: MP para a compra de um carro novo destinado a Marco Maciel, vice na Presidência, mas não nas mordomias.
O abuso da violação à exigência constitucional, outro continuismo adotado por Lula com fervor, sujeitaria esses presidentes a processos de impeachment, não fossem os abusos mais fortes, no Brasil, do que a Constituição. Para atenuar-lhes os efeitos, a regra constitucional estabeleceu que as MPs deveriam ser aprovadas pelos parlamentares, dados como representantes da sociedade. O contravapor é, no entanto, mais eficaz. E não se aplica só a MPs.
Está mais do que demonstrado que a Presidência da República aprova no Legislativo as MPs que quiser, e aprova ou derruba os projetos também à sua vontade. A livre imoralidade que é o sistema de compra-e-venda de votos anula a independência e a representatividade do Congresso. Ou seja, exclui do corpo institucional exatamente o que nele é mais definidor e essencial das instituições no regime de democracia.
Tudo o que tem dificultado, ocasionalmente, a aplicação das orientações do Executivo sobre o Legislativo é, tão só, questão de montante ou de competência. A quantidade de cargos ou de verbas, às vezes; de outras, a inabilidade, caso da grossura com que Lula e seu timinho operam a política e suas extensões, incapazes de um mínimo de sutileza e imaginação.
A necessidade de que o Senado aprovasse com urgência, na quinta-feira, uma MP que logo caducaria, depois de quatro meses retida na Câmara, levou o senador Aloizio Mercadante a lembrar-se de um Aloizio Mercadante que nem aqui fora era mais lembrado: reto, crítico e coerente, mostrou que pelo menos a metade das 123 MPs de Lula não tinha as necessárias "relevância e urgência". Lula vem emitindo uma MP a cada três e meio dias úteis.
Ocorrido o entupimento de MPs, discutem-se na Câmara e no Senado possíveis fórmulas para evitar a fácil obstrução da pauta de votações. Ninguém procura a desobstrução da democracia.

Lugar certo
Não há despropósito na entrega, já quase acertada, do Ministério dos Esportes a um representante de Paulo Maluf. A Presidência, está claro, adotou o critério de que, no esporte, trata-se de levar bola.


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