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São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 2003

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UM ANO DE LULA

Fundador do PT, César Benjamin diz que conversão do partido agride a democracia e que governo ergue castelo de cartas

Ex-petista vê Lula como "um FHC sem o real"

FLÁVIA MARREIRO
DA REDAÇÃO

"O governo Lula anuncia orgulhosamente sua própria mediocridade" ao apostar em crescimento de 4% do PIB no ano que vem. "Lula tem sido um Fernando Henrique sem real, ou seja, nada" e "se comporta como uma espécie de Moisés de opereta, até porque, na travessia que propõe, nada sai do lugar".
A análise é do ex-petista César Benjamin, 49, e não chega a surpreender. Ele enxerga na esquerda uma crise sem precedentes e o estilo duro já obrigou o intelectual a se desculpar com militantes petistas pelas críticas feitas em "O triunfo da razão cínica", artigo publicado na revista "Caros Amigos" em que ele apontava a morte do Partido dos Trabalhadores.
Benjamin -fundador do partido e dirigente até 1995-, porém, mantém a previsão apocalíptica para o PT, que, segundo ele, está imerso "na cultura do pragmatismo, do oportunismo e do individualismo".
"Primeiro vamos ler os sinais, como fazem os profetas", diz ele, antes de fazer uma análise do processo que culminou na expulsão dos parlamentares chamados radicais, a quem ele defende.
Sobre a formação de um partido de esquerda para se opor ao governo Lula, desconversa: "A oposição virá do povo brasileiro".
Benjamin, editor da Contraponto, hoje coordena o Movimento Consulta Popular (fórum que reúne movimentos sociais) e crê que o setor terá uma posição ativa no jogo político em 2004: "Os movimentos sociais só terão capacidade de ação minimamente eficaz depois que o descontentamento difuso se espalhar, criando uma legitimidade social de fundo para que eles recuperem a autoconfiança e percebam a necessidade de agir".
A seguir, trechos da entrevista.

Folha - Como um dos fundadores do PT e um dos primeiros a apontar no partido mudanças de rumo, ainda em 1995, como o sr. avalia a saída dos chamados radicais? Haverá efeito de longo prazo? Haverá mudanças internas?
César Benjamin -
Primeiro vamos ler os sinais, como fazem os profetas. Delúbio Soares foi escolhido pela corrente majoritária do PT para defender no Diretório Nacional a expulsão da senadora Heloísa Helena. Na sua condição de eterno tesoureiro, Delúbio tem uma trajetória opaca. Exige-se dele apenas que seja capaz de levantar financiamentos, movimente-se de forma discreta e demonstre absoluta fidelidade aos chefes. Heloísa Helena é o contrário disso: extrovertida, sincera, independente, movida por ideais. É a cara da militância. Um sempre viveu na sombra, a outra sempre viveu na luz. Delúbio apontou seu dedo acusatório contra Heloísa em uma reunião que custou R$ 150 mil, realizada em um hotel de luxo, cujo proprietário foi o principal sócio e avalista de Fernando Collor. Do ponto de vista simbólico, o que mais precisa ser dito?
No terreno prático, tudo me parece patético. Pois, se prestarmos atenção ao que os chamados radicais do PT dizem, veremos que, em economia, eles pedem apenas que o capitalismo funcione: que a taxa de juros seja inferior aos ganhos na produção, que se criem condições para que os empresários contratem mais trabalhadores, que o Estado invista em infra-estrutura e serviços públicos e assim por diante. No máximo, desejam algumas reformas que os países desenvolvidos fizeram há muito tempo. Em política, eles também pedem pouco: que a democracia representativa seja respeitada. Pois um regime representativo pressupõe uma relação de lealdade entre representante e representado. O PT agride e enfraquece a democracia brasileira, com consequências imprevisíveis a médio prazo quando chega ao poder e muda subitamente todas as suas posições.
Creio que deveríamos tentar entender por que pessoas que defendem coisas tão simples, atuam pacificamente e buscam manter a própria integridade são chamadas de radicais no Brasil.

Folha - Com a saída dos radicais, o movimento que se anuncia para formar um novo partido de esquerda [ou fortalecer o PSTU, dissidência dos intelectuais ligados ao PT e de outros petistas históricos], o sr. crê que o governo Lula terá uma oposição de esquerda?
Benjamin -
Terá oposição do povo brasileiro, pois não tem nada a oferecer a ele. Repetirá um ciclo que conhecemos bem, pela trajetória dos grupos que ocuparam antes a Presidência: instalam-se, deslumbram-se, pensam que vão ficar 20 anos e são defenestrados. Com seus cargos e verbas, com ampla margem de manobra para a prática do fisiologismo, o Executivo brasileiro é bastante forte quando se trata de premiar os amigos e punir os adversários. Anula com facilidade o Legislativo, compra a adesão dos meios de comunicação de massa, manipula cientificamente a enorme necessidade coletiva de manter acesa a esperança e assim por diante. Isso confere aos inquilinos recém-chegados ao Planalto a ilusão de que manejam um poder incontrastável. Mas tudo é um castelo de cartas, pois vivemos em uma sociedade de massas imersa em profunda crise, e esse mesmo Estado é fraquíssimo como instrumento de transformação. Assim, a crise se repõe. Como a sociedade precisa ser ouvida de tempos em tempos, aquele superpoder se esvai. Fernando Henrique [Cardoso, presidente de 1995 a 2002] demorou mais porque teve o enorme impulso do Plano Real. Lula tem sido um Fernando Henrique sem real, ou seja, nada.

Folha - No livro "As transformações do PT e os rumos da esquerda no Brasil", o sr. diz que a liderança de Lula "poderá ser trágica" para o país. Por quê?
Benjamin -
Ao chegar ao governo e aderir ao receituário conservador, o PT criou uma situação em que o povo e a nação se tornaram muito mais vulneráveis. Por um lado, desarticulou-se, pelo menos por um tempo, a capacidade de resistência da sociedade brasileira à agenda conservadora, pois essa capacidade estava grandemente depositada no próprio PT e nos movimentos que ele influencia. Por outro, como todo recém-convertido, o PT tem de assumir o novo credo com mais radicalidade do que os crentes tradicionais, cuja fé está acima de qualquer desconfiança. As sucessivas demonstrações de vassalagem do PT ao establishment, em busca de conquistar e manter a "credibilidade", custarão muito caro ao Brasil. Parece que o próximo passo será a concessão de autonomia legal ao Banco Central, operação que Celso Furtado classificou, com muita procedência, de "privatização do Banco Central". Teremos entrado, definitivamente, no terreno da alta traição aos interesses nacionais.
Eu disse que a liderança de Lula poderá ser trágica também porque a crise do seu governo -ela me parece inevitável, mais cedo ou mais tarde- colocará o Brasil diante de uma situação perigosa. Taxas de mais de 20% de desemprego em grandes cidades sempre conduziram a crises sociais e políticas graves, com resultados incertos, muitas vezes dramáticos. Quando a esperança em Lula desmanchar-se, que restará ao povo brasileiro? De onde surgirá o aventureiro salvacionista? Ou será que estarão criadas as condições para congelar de vez o sistema de poder, com a adoção de um regime parlamentarista com Banco Central independente? Assim, o povo não elegeria mais o chefe do governo, e o governo, por sua vez, não poderia mais fazer política econômica. A blindagem estaria completa. Parece-me provável que o PT venha a ser cúmplice dessa operação. Como a crise social não seria resolvida, veríamos então surgir no Brasil os verdadeiros radicais.

Folha - O governo aposta na retomada do crescimento em 2004 para desviar da rota de crise de que o sr. fala, não?
Benjamin -
O problema é justamente que estamos diante de mais uma aposta. É tão inconsistente quanto todas as que a antecederam. Há muitos anos, no Brasil, o crescimento ocorrerá no ano seguinte. Às vezes, algum crescimento ocorre, nem que seja por efeito estatístico ou inércia, no contexto do que os economistas chamam de "stop and go". Crescemos 4% no ano 2000. E daí? Algum problema foi equacionado? Ao limitar sua utopia a prometer um soluço de crescimento do nosso capitalismo dependente, o governo Lula anuncia orgulhosamente sua própria mediocridade.

Que alternativa que pode haver a esse modelo que o sr. critica?
Benjamin -
O governo atual, como os anteriores, é escravo de uma macroeconomia do curto prazo que se nutre do próprio fracasso. Pois essa macroeconomia se justifica pela necessidade de gerir uma crise que ela mesma ajuda a eternizar. Cria-se assim um moto perpétuo que não permite saída a partir de si mesmo. Ao contrário: o fracasso conduz os ideólogos à idéia de que é preciso fazer mais do mesmo, dobrar a aposta, pois sempre faltou fazer alguma coisa. Na comunicação com as massas, essa ideologia reveste-se com o mito da travessia: precisamos purgar os pecados no presente para alcançar a terra prometida. Lula se comporta como uma espécie de Moisés de opereta, até porque, na travessia que propõe, nada sai do lugar.
Essa lógica precisaria ser rompida de fora para dentro, por uma ação de natureza política que recolocasse a discussão sobre os fins da própria economia e sobre os fundamentos da nossa vida em sociedade. Só assim o problema da transformação qualitativa da sociedade -que é o problema de todos os socialistas, mesmo os mais moderados- poderia ser colocado. Num contexto de estímulo à participação, apareceriam inúmeras alternativas. Mas a credibilidade junto ao capital financeiro exige também um comportamento político desmobilizador.
A adesão do PT ao discurso da falta de alternativas é constrangedora, pois torna inútil todo o esforço que fizemos para eleger o próprio Lula, e não outro qualquer. Por que ele se candidatou, então? O fatalismo, que sempre foi considerado um sinal de ignorância, converteu-se subitamente em um sinal de sapiência. Pior: adotando esse discurso, os novos dirigentes da nação fogem de sua responsabilidade. Os advogados sabem muito bem que uma decisão ou ação sem alternativas não está sujeita a julgamento.
Tudo isso é uma operação ideológica primária, que só prospera em um ambiente de desmoralização do pensamento. A idéia de ausência de alternativas é sempre falsa, pois as possibilidades inscritas no real são sempre muito maiores do que o que está em via de realizar-se em um dado momento. Nenhum conjunto de opções preenche o campo do possível, nenhum é inevitável. A escolha que fazemos em cada momento é uma entre muitas e é responsabilidade nossa.

Folha - Em "O Triunfo da Razão Cínica", artigo publicado na revista "Caros Amigos", o sr. declarou a morte do PT. Depois, pediu desculpas, mas não retirou as críticas. Afinal, o PT morreu?
Benjamin -
Fui dirigente do PT durante mais de 15 anos, num período em que tentamos construir um partido socialista, democrático e de massas. Fui embora depois da campanha de 1994, quando vi que o ovo da serpente estava incubado. De lá para cá, tudo piorou, com a ascensão fulminante dos Delúbios e a marginalização das Heloísas. Aquelas três características essenciais do nosso projeto desapareceram completamente da vida e do imaginário do PT. Por isso o partido está morrendo.
Estamos assistindo ao fim de um ciclo de existência da esquerda brasileira, cuja crise é profundíssima. É uma crise de prática, pois a esquerda rompeu seus laços de convivência e solidariedade com o povo; é de valores, pois ela respira hoje a cultura do pragmatismo, do oportunismo e do individualismo; é de pensamento, pois nesse contexto perdem-se de vista os verdadeiros problemas e potencialidades da sociedade brasileira. Não se resolve isso pela criação de uma nova sigla, mas pela construção de novas práticas, valores e pensamentos, o que é um processo incomparavelmente mais difícil. Mesmo assim, muitas pessoas dedicam-se a preparar esse caminho há vários anos.

Folha - O sr. dirige um fórum de movimentos sociais, outra base cara de apoiadores de Lula. Que papel que esses movimentos terão?
Benjamin -
O governo está pendurado na popularidade pessoal de Lula, que por sua vez decorre da necessidade, compreensível e legítima, que as pessoas têm de se apegar a uma esperança. Não se pode dizer quanto tempo isso dura. Os movimentos sociais só terão capacidade de ação minimamente eficaz depois que o descontentamento difuso se espalhar, criando uma legitimidade social de fundo para que eles recuperem a autoconfiança e percebam a necessidade de agir. Acho que isso poderá começar a ocorrer já no próximo ano. Mas é uma avaliação muito subjetiva.

Folha - Lula tem popularidade alta não só no Brasil. São depositadas nele esperanças de esquerda de toda a América Latina. Quais as perspectivas da esquerda no continente?
Benjamin -
Na última década, os Estados nacionais do continente foram em grande medida desmontados e desmoralizados, enfraquecendo-se instituições essenciais para o exercício da soberania e da cidadania. A monitoração externa dos atos de governo tornou-se rotina. As moedas nacionais se enfraqueceram ou, em diversos casos, foram simplesmente abolidas. Houve ampla desnacionalização da base produtiva e dos recursos naturais. Os espaços econômicos estão sob ameaça de extinção, com a criação da Alca. Intensificaram-se movimentações em torno do Plano Colômbia que prenunciam um aumento da presença militar externa na região amazônica. Se esses processos não forem revertidos, o cenário estrutural do continente terá sido dramaticamente alterado já no fim desta década. A evolução recente dos acontecimentos na Argentina, na Bolívia e na Venezuela mostra, no entanto, que poderemos reagir.
O Brasil está imerso nessa crise continental, mantendo porém as características estruturais que lhe são peculiares: a continentalidade do território, a grande massa demográfica, uma base técnica razoavelmente desenvolvida, uma economia cheia de potencial, enorme capacidade de criação cultural. É o grande país periférico das Américas, um dos cinco ou seis grandes países periféricos do mundo. Vive uma crise grave, mas tem enorme potencial para superá-la. É insubstituível na criação do projeto de uma área regional de cooperação e desenvolvimento, com presença autônoma no mundo, e que poderá ser o embrião de uma federação continental -latino e americano. Parece um sonho, mas a história, a longo prazo, sempre foi feita pelos sonhadores. Os chamados realistas desaparecem sem deixar vestígios.


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