São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

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NO PLANALTO

Câmara adota tática da transparência obscura

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

É áspera a vida de deputados e senadores. À jornada brasiliense -terça a quinta- soma-se o expediente nos Estados -sexta a segunda. Rotina de mouro.
Para financiar o contato com as "bases", recebem um extra de R$ 12 mil por mês. É a chamada "verba indenizatória". Goteja na conta bancária até durante os três meses de férias anuais. Justo, muito justo, justíssimo.
Neste início de 2004, a Câmara jogou na internet a "prestação de contas" dos gastos dos deputados. Transparência pioneira, vangloria-se o petista João Paulo Cunha, eleito presidente da Casa sob aura "renovadora".
Em vez de louvar o ineditismo, certa imprensa enxerga no gesto um quê de falácia. Queixa-se de que foram expostas só as cifras. Nem sinal de notas e recibos.
A crítica é injusta. Bem verdade que expostos assim, a esmo, os números dizem pouco. Mas sugerem muito. A meia prestação de contas equivale à meia palavra.
Bom entendedor, o contribuinte logo se dará conta de que continua a ser tratado como grandíssimo ...tário, autêntico ...iota, o mesmo ...becil de sempre.
Os comprovantes de gastos encontram-se arquivados num setor de nome grandiloqüente: Núcleo de Fiscalização e Controle da Verba Indenizatória do Exercício Parlamentar. O "controle" é formal. A "fiscalização", inexistente.
O surto de "transparência" foi inspirado pela Folha. Em agosto de 2003, o jornal pediu à Câmara, por escrito, acesso ao papelório que escora a "verba indenizatória".
Desatendido, o jornal recorreu ao STF. O Supremo ordenou, em dezembro, a abertura dos arquivos. A decisão reconheceu o óbvio: os dados são públicos.
Ouvido, o deputado João Paulo Cunha disse que cumpriria a sentença. Mas, em conversas com seus pares, foi convencido de que era preciso impor limites ao lamentável hábito dos jornalistas de querer informação.
João Paulo pediu e obteve a reconsideração da decisão do STF. Foram dois os argumentos. Uma patranha e uma promessa.
A patranha: alegou-se que o ofício da Folha não fora analisado pela Mesa Diretora da Casa. A promessa: as informações seriam divulgadas. Não só para o jornal, "mas para toda a coletividade".
Os dados de 2003, reivindicados pelo jornal, jazem à sombra. Foram à internet, por ora, apenas os lançamentos relativos a janeiro de 2004.
Submetidos à meia verdade, os repórteres, seres incorrigíveis, suspeitam que a metade exposta pode incorporar a parte mentirosa. Tolice. Comparada ao silêncio que vigorava anteriormente, a hipocrisia atual é um avanço ético.
Quem percorreu as cifras, descobriu, por exemplo, que 26 deputados gastaram em janeiro mais do que os franqueados R$ 12 mil. Um deles, Osvaldo Biolchi (PMDB-RS) torrou o dobro: R$ 24 mil.
Só em "combustíveis", Biolchi beliscou R$ 16.973,85. A título de "divulgação da atividade parlamentar", mordeu mais R$ 5.700,00. Em contato com o gabinete do deputado, o repórter pediu para tatear os recibos. Nada feito.
A ciranda "indenizatória" funciona como uma espécie de cheque especial às avessas. Quem estoura os gastos é premiado. Recebe antes dos demais.
Cada deputado dispõe de R$ 72 mil por semestre. O conta-gotas é acionado no início de cada mês. Vai pingando até bater no limite de R$ 12 mil. Os mais expansivo$ recebem a diferença, de uma vez, no primeiro dia útil do mês seguinte.
João Mendes de Jesus (PDT-RJ), vice-líder em gastos no mês de janeiro, petiscou R$ 22.843,58. Só para "divulgar a atividade parlamentar", serviu-se de R$ 15 mil. O repórter deixou recados em seu gabinete. Não obteve resposta.
Severino Cavalcanti (PP-PE) gastou R$ 18.736,89 -R$ 6.510,00 em "combustíveis" e R$ 12.226,89 em "locomoção, hospedagem e alimentação". Sua assessoria informa que ele teve de cruzar o solo pernambucano para socorrer vítimas de enchentes. Os comprovantes dos gastos? Não divulgou.
Cavalcanti é segundo-secretário da Mesa Diretora da Câmara. Nas discussões internas que João Paulo disse ao STF que não ocorreram, o deputado se opôs às pretensões da Folha de apalpar notas e recibos. Deve ter os seus motivos.
Entre os vários deputados contatados pelo repórter, apenas o tucano Walter Feldman (SP) -gastos de R$ 17.453,54- topou exibir os comprovantes fiscais. Não por acaso, têm aparência asséptica.
Há um consenso entre os próprios deputados: muitas contabilidades não resistem à luz do sol. A transparência de meia-tigela adotada pela Câmara expõe gente decente a uma suspeição desnecessária.
Procurado, o presidente João Paulo -gastos de R$ 9.616,00 em janeiro- preferiu guardar silêncio. O repórter solicitou-lhe notas e recibos. Julgou-se que apreciaria dar o exemplo. Engano. Optou pela sombra. Uma pena.
Os eleitores estão diante da rara oportunidade de pressionar os seus "representantes". A quem interessar possa, o e-mail de João Paulo é: dep.joaopaulocunha@camara.gov.br


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