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GOVERNO SOB PRESSÃO
PSDB passa a se julgar novo porta-voz da moralidade, função do PT na era FHC; para tucano, Lula e PT perderam o que lhes restava de identidade
Lula e FHC trocam de papel e mudam discurso
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
O escândalo dos Correios operou na cena política uma subversão de papéis. Ao entregar-se a articulações destinadas a asfixiar
uma CPI encabeçada pelo PSDB
de Fernando Henrique Cardoso,
o PT de Luiz Inácio Lula da Silva
rompeu o último elo que ainda o
prendia ao passado. O tucanato
passou a julgar-se o novo porta-estandarte da moralidade.
De acordo com avaliação de
FHC, feita em troca de telefonemas com correligionários nas últimas 48 horas, Lula e o PT perderam o que lhes restava de "identidade". O "novo" petismo, que já
fora aceito pela elite, que já cedera
ao receituário liberal, que já fizera
as pazes com o mercado financeiro, sacrifica agora os derradeiros
vestígios de seu patrimônio político mais valioso. Um dote que Lula
definira no título de um artigo
que escrevera para a "Gazeta Mercantil" em 2000: "A honestidade
como vantagem comparativa".
No vale-tudo semântico dos últimos dias, certas frases do passado ficaram desobrigadas de fazer
sentido. Afirmações como essas:
1) "Estou convicto de que somente as investigações de uma
CPI podem esclarecer até que
ponto o governo está envolvido
nesse mar de lama. E mais: estou
convencido também de que somente a mobilização da sociedade
vai levar o Congresso a instalar a
CPI de que o Brasil tanto precisa"
(Lula, em artigo veiculado pela
Folha em 31 de agosto de 2000);
2) "Não posso aceitar o pressuposto de que abafei crimes. A leviandade da imprensa e o golpismo sem armas da oposição estão
criando um clima de fascismo e
terror insuportável. Não para
mim, que tenho até instrumentos
psicológicos para resistir. Quem
pode não suportar é o país" (FHC,
em entrevista em "O Globo" no
dia 23 de maio de 2001).
Submetidos às novas conveniências, Lula e FHC protagonizam um velho enredo. Só que
com as falas trocadas. Levado às
cordas da "CPI dos Correios", Lula vê "conspiração e golpe" onde
antes enxergava "mobilização" legítima da "sociedade". No exercício regular da implicância ranzinza que caracteriza a prática oposicionista, FHC impinge ao sucessor a mesma pecha de abafador
de negócios escusos que ontem
considerava intolerável.
"Ninguém abafa mais nada no
país", provoca FHC. O ex-presidente recorre a um tipo de armamento retórico que parece extraído do paiol do antigo PT. Reproduz a atmosfera de "terror insuportável" de que se julgava vítima.
Valendo-se da metáfora, o líder
tucano assestou contra Lula uma
imagem ornitológica. Disse que,
sob o petismo, o país perdeu o rumo. Tal qual um "peru bêbado
em dia de Carnaval." Peru de Carnaval? "De Natal", corrigiria FHC.
Não é de hoje
O fenômeno que desgovernou o
governo FHC e agora desvia Lula
do bom caminho não é coisa de
agora. Vem sendo reproduzido
pelo menos desde a gestão de José
Sarney (1985-89). Tão logo tomam posse, os diferentes presidentes dividem a máquina pública entre os partidos que se dispõem a dar-lhes suporte no Congresso. O pretexto da "governabilidade" submete nacos do Estado
aos apetites de diferentes siglas.
Na entrevista que concedeu ao
"Globo" em 2001, FHC foi inquirido sobre a qualidade das "alianças" que se formaram à sua volta.
"Precisei avançar com o atraso,
uma ironia da história", disse na
ocasião. A ironia custou a perda
da Presidência para o PT.
Uma vez eleito, Lula recompôs
parte do consórcio partidário que
se alinhara a FHC. Passou a conviver com políticos que antes chamava de "picaretas". Entre eles
Roberto Jefferson, do PTB carioca, protagonista do esquema supostamente montado para extorquir verbas públicas em estatais e
autarquias como os Correios.
Rumo a 2006
Ao ceder aos desejos de políticos de reputação duvidosa, Lula
conferiu ao balcão das barganhas
brasilienses aparência de problema insanável. E reavivou a pretensão do PSDB de retomar o poder na disputa de 2006. Excluindo-se do rol de candidatos, FHC
diz em segredo que Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, é o
melhor nome para confrontar Lula no próximo ano. Em matéria de
assepsia, seria inigualável.
Lula e o PT tentarão refrear o
ímpeto moralista do PSDB arrastando o governo de FHC para o
centro de uma outra CPI, a do
"Setor Elétrico", que irá funcionar
simultaneamente à dos Correios.
O petismo entra na guerra em
desvantagem. Por ora, o maior
inimigo do PT é a história do PT.
Confrontados com os ecos do
passado, os comentários do alto
comando petista soam constrangedores. "A oposição quer ganhar
no grito. Os partidos que apóiam
o governo e o PT não podem
apoiar essa CPI [dos Correios]",
diz o ministro José Dirceu (Casa
Civil). Logo ele, que, em artigo
lançado no sítio do PT na internet, defendera em 2000 a abertura
de CPI da corrupção contra FHC.
"Mais uma vez o governo FHC
faz de tudo para impedir a instalação de uma CPI", anotara Dirceu,
então presidente do PT. "Agora
tudo se agravou para o governo e
para a aliança política que o sustenta, formada pelos partidos
PSDB, PMDB e PFL, sempre com
o apoio do PPB e do PTB". Excluindo-se o PSDB e o PFL, este
último co-autor do pedido de
"CPI dos Correios", todas as siglas
citadas pelo ministro encontram-se integradas ao governo Lula.
"Tenho dúvidas sobre a contribuição de tantas CPIs na apuração de fatos relevantes. Muitas são
partidarizadas, servem apenas de
palanque político", diz Aloizio
Mercadante, líder do governo no
Congresso. Logo ele que, em 2 de
maio de 2001, subira à tribuna da
Câmara para defender a investigação dos escândalos do PSDB.
"O dever com a histórica do
Brasil é o de viabilizar uma CPI.
Ela não pune previamente. Apura, dá transparência", dizia. O
Mercadante de 2001 discorria sobre sua experiência na CPI do
Collorgate, que teve Dirceu como
um dos signatários. A lembrança
injeta dose de ironia ao suplício
do PT. Roberto Jefferson, que levou o petismo às cordas na semana passada, ganhou notoriedade
ao atuar como capitão-mor da
milícia que defendia Fernando
Collor de Mello na CPI da qual
Mercadante costumava se ufanar.
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