São Paulo, domingo, 29 de maio de 2005

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GOVERNO SOB PRESSÃO

PSDB passa a se julgar novo porta-voz da moralidade, função do PT na era FHC; para tucano, Lula e PT perderam o que lhes restava de identidade

Lula e FHC trocam de papel e mudam discurso

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

O escândalo dos Correios operou na cena política uma subversão de papéis. Ao entregar-se a articulações destinadas a asfixiar uma CPI encabeçada pelo PSDB de Fernando Henrique Cardoso, o PT de Luiz Inácio Lula da Silva rompeu o último elo que ainda o prendia ao passado. O tucanato passou a julgar-se o novo porta-estandarte da moralidade.
De acordo com avaliação de FHC, feita em troca de telefonemas com correligionários nas últimas 48 horas, Lula e o PT perderam o que lhes restava de "identidade". O "novo" petismo, que já fora aceito pela elite, que já cedera ao receituário liberal, que já fizera as pazes com o mercado financeiro, sacrifica agora os derradeiros vestígios de seu patrimônio político mais valioso. Um dote que Lula definira no título de um artigo que escrevera para a "Gazeta Mercantil" em 2000: "A honestidade como vantagem comparativa".
No vale-tudo semântico dos últimos dias, certas frases do passado ficaram desobrigadas de fazer sentido. Afirmações como essas:
1) "Estou convicto de que somente as investigações de uma CPI podem esclarecer até que ponto o governo está envolvido nesse mar de lama. E mais: estou convencido também de que somente a mobilização da sociedade vai levar o Congresso a instalar a CPI de que o Brasil tanto precisa" (Lula, em artigo veiculado pela Folha em 31 de agosto de 2000);
2) "Não posso aceitar o pressuposto de que abafei crimes. A leviandade da imprensa e o golpismo sem armas da oposição estão criando um clima de fascismo e terror insuportável. Não para mim, que tenho até instrumentos psicológicos para resistir. Quem pode não suportar é o país" (FHC, em entrevista em "O Globo" no dia 23 de maio de 2001).
Submetidos às novas conveniências, Lula e FHC protagonizam um velho enredo. Só que com as falas trocadas. Levado às cordas da "CPI dos Correios", Lula vê "conspiração e golpe" onde antes enxergava "mobilização" legítima da "sociedade". No exercício regular da implicância ranzinza que caracteriza a prática oposicionista, FHC impinge ao sucessor a mesma pecha de abafador de negócios escusos que ontem considerava intolerável.
"Ninguém abafa mais nada no país", provoca FHC. O ex-presidente recorre a um tipo de armamento retórico que parece extraído do paiol do antigo PT. Reproduz a atmosfera de "terror insuportável" de que se julgava vítima. Valendo-se da metáfora, o líder tucano assestou contra Lula uma imagem ornitológica. Disse que, sob o petismo, o país perdeu o rumo. Tal qual um "peru bêbado em dia de Carnaval." Peru de Carnaval? "De Natal", corrigiria FHC.

Não é de hoje
O fenômeno que desgovernou o governo FHC e agora desvia Lula do bom caminho não é coisa de agora. Vem sendo reproduzido pelo menos desde a gestão de José Sarney (1985-89). Tão logo tomam posse, os diferentes presidentes dividem a máquina pública entre os partidos que se dispõem a dar-lhes suporte no Congresso. O pretexto da "governabilidade" submete nacos do Estado aos apetites de diferentes siglas.
Na entrevista que concedeu ao "Globo" em 2001, FHC foi inquirido sobre a qualidade das "alianças" que se formaram à sua volta. "Precisei avançar com o atraso, uma ironia da história", disse na ocasião. A ironia custou a perda da Presidência para o PT.
Uma vez eleito, Lula recompôs parte do consórcio partidário que se alinhara a FHC. Passou a conviver com políticos que antes chamava de "picaretas". Entre eles Roberto Jefferson, do PTB carioca, protagonista do esquema supostamente montado para extorquir verbas públicas em estatais e autarquias como os Correios.

Rumo a 2006
Ao ceder aos desejos de políticos de reputação duvidosa, Lula conferiu ao balcão das barganhas brasilienses aparência de problema insanável. E reavivou a pretensão do PSDB de retomar o poder na disputa de 2006. Excluindo-se do rol de candidatos, FHC diz em segredo que Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, é o melhor nome para confrontar Lula no próximo ano. Em matéria de assepsia, seria inigualável.
Lula e o PT tentarão refrear o ímpeto moralista do PSDB arrastando o governo de FHC para o centro de uma outra CPI, a do "Setor Elétrico", que irá funcionar simultaneamente à dos Correios. O petismo entra na guerra em desvantagem. Por ora, o maior inimigo do PT é a história do PT.
Confrontados com os ecos do passado, os comentários do alto comando petista soam constrangedores. "A oposição quer ganhar no grito. Os partidos que apóiam o governo e o PT não podem apoiar essa CPI [dos Correios]", diz o ministro José Dirceu (Casa Civil). Logo ele, que, em artigo lançado no sítio do PT na internet, defendera em 2000 a abertura de CPI da corrupção contra FHC.
"Mais uma vez o governo FHC faz de tudo para impedir a instalação de uma CPI", anotara Dirceu, então presidente do PT. "Agora tudo se agravou para o governo e para a aliança política que o sustenta, formada pelos partidos PSDB, PMDB e PFL, sempre com o apoio do PPB e do PTB". Excluindo-se o PSDB e o PFL, este último co-autor do pedido de "CPI dos Correios", todas as siglas citadas pelo ministro encontram-se integradas ao governo Lula.
"Tenho dúvidas sobre a contribuição de tantas CPIs na apuração de fatos relevantes. Muitas são partidarizadas, servem apenas de palanque político", diz Aloizio Mercadante, líder do governo no Congresso. Logo ele que, em 2 de maio de 2001, subira à tribuna da Câmara para defender a investigação dos escândalos do PSDB.
"O dever com a histórica do Brasil é o de viabilizar uma CPI. Ela não pune previamente. Apura, dá transparência", dizia. O Mercadante de 2001 discorria sobre sua experiência na CPI do Collorgate, que teve Dirceu como um dos signatários. A lembrança injeta dose de ironia ao suplício do PT. Roberto Jefferson, que levou o petismo às cordas na semana passada, ganhou notoriedade ao atuar como capitão-mor da milícia que defendia Fernando Collor de Mello na CPI da qual Mercadante costumava se ufanar.

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