São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ELIO GASPARI

FFHH faz mais testamento

FFHH continua a redigir seu oneroso testamento. Assinou com o presidente argentino, Eduardo Duhalde, um pacote de medidas comerciais que incluiu um novo regime automotivo. Com pouco mais de três meses de governo, legislou sobre três anos do mandato de seu sucessor. Estabeleceu que em 2003 a Argentina poderá vender ao Brasil carros com até 80% de seu valor oriundo de outros países. Em 2004 essa percentagem passa a 90% e em 2005, a 95%. Ou seja, em 2005 os argentinos poderão vender ao mercado brasileiro uma Mercedes alemã lavada por bolivianos em Buenos Aires.
Trata-se de um acerto que desemprega brasileiros num setor em que o que não falta são desempregados.
FFHH quer governar até o último dia de seu mandato. É seu direito e é bom que assim seja. Poderia assinar um novo Tratado de Tordesilhas, devolvendo, para sempre, um pedaço do Brasil à Espanha. No caso, não se deu isso. Ele fez um acordo que vigora durante três dos quatro anos de mandato de seu sucessor. Isso não é governar até o último dia. É avançar sobre atribuições alheias. A transação argentina foi chamada de "limpeza de mesa". FFHH escolheu mal as palavras.
Outro pedaço do testamento de Cardoso relaciona-se com a nomeação de embaixadores. Se FFHH quer dar postos aos seus colaboradores, pode oferecer-lhes países localizados ao sul da linha do Equador. Verá que herdeiro de testamento presidencial não quer posto no lado errado do mundo, onde vive a patuléia que lhes pagará salários. E que vota.

A FGV deve cuidar melhor de si
A Fundação Getúlio Vargas precisa contratar um serviço especializado para cuidar da sua marca. No tempo em que os bichos falavam, ela emprestava o seu nome para o cálculo do aumento do custo de vida. Passou pelo vexame de ratificar uma taxa de inflação fraudulenta (12% em 1973). Destinava-se a iludir a choldra. Enquanto endossavam a fraude, seus mandarins denunciavam a falsidade do número nos corredores da ditadura. Faziam isso com o único propósito de adular o governo seguinte.
Recentemente, a fundação teve o seu nome associado a um trabalho de assessoria à então candidata Roseana Sarney. Agora, uma publicação intitulada GVPrevê informa que, na hipótese da vitória de um candidato (Lula), a urucubaca financeira durará até o final de 2003. Com Serra, ela acaba entre três e seis meses antes. Faz isso uma semana antes da eleição.
Professores da FGV podem prever o que bem entenderem, e suas opiniões merecem atenção. Podem também ler mãos ou folhas de chá. Desde que o façam apenas com o seu nome. Sem meter o F de fundação na história, muito menos o GV de Getúlio Vargas.
Se a FGV e seus técnicos acharem que é o caso, podem pisar fundo, entrando no negócio de franchising. Será uma nova finalidade para a fundação. Lançarão os seguintes títulos e serviços: AstroGV, DiskGV e Rent-GV.

Dois gumes
A caciquia petista sabe que no domingo passado as pesquisas de sintonia fina revelavam que Lula tinha mais de 50% dos votos.
A decisão a tomar é dura. Jogando-se a militância na rua, conseguem-se dois pontos percentuais. Para cima, se ela descer sorrindo. Para baixo, se vier zangada como fez contra Collor, em 1989.

Velociraptor
O talento dos redatores da revista inglesa "The Economist" criou uma nova expressão: "velociraptor". Designa a linha dura do governo Bush, mais precisamente os fundamentalistas do Pentágono, alinhados sob a influência do professor Paul Wolfowitz. Substitui a velha designação de "falcão", prestes a completar 50 anos.O velociraptor é aquele dinossauro feroz do parque jurássico.

Relíquia de Miro
Há dez anos, quando se formou a CPI que investigava as roubalheiras de PC Farias, o presidente Fernando Collor disse que seus integrantes eram "porcos a chafurdar na lama". O deputado Miro Teixeira, um dos mais mais ferozes membros da CPI, passou por um artesão que vendia objetos diante da catedral de Brasília e viu uma pequena jardineira com a forma de um porquinho.
Levou-a para seu gabinete e afeiçoou-se ao objeto. Diversos visitantes já tentaram levá-lo, e Miro começa a pensar em proteger seu porquinho, doando-o a uma instituição cultural.

Entrevista

Tasso Jereissati
(53 anos, ex-governador do Ceará, candidato ao Senado pelo PSDB)

-O professor Kenneth Maxwell, diretor do programa de América Latina do Council on Foreign Relations, escreveu um artigo no "Financial Times" dizendo que o melhor que Wall Street tem a fazer é rezar para que Lula ganhe no primeiro turno, pois isso evitaria uma radicalização artificial na política brasileira. O senhor acha que essa é a melhor solução?
-Não sei lhe dizer qual resultado é o melhor para o mercado, nem em que turno. O que posso lhe garantir é que esse mercado tem que se atualizar. A globalização só tem sentido se ela consolida a democracia nos países emergentes, e não há democracia sem alternância no poder. Se o Lula ganhar, o mercado haverá de absorver esse resultado, influenciado pelo próprio comportamento do PT e pelos acontecimentos.
-O que o senhor espera de um governo Lula?
-O mesmo que o alemão esperou de um governo Schröder, a França, do governo Mitterand, e os Estados Unidos, de certa maneira, do governo Clinton. Um governo de respeito aos contratos e aos acordos internacionais. Não será o governo dos sonhos do mercado, mas o povo brasileiro não vai às urnas escolher um presidente para o mercado. Vai escolher um presidente para o Brasil. Será um governo de muita mudança, algumas das quais do meu desagrado. Não vai ser por isso que vou pensar em sair do país, em parar de investir nas minhas empresas.
-Há chance de o senhor votar no Lula?
-No primeiro turno, nenhuma. No segundo, se o adversário for Ciro Gomes, voto no Ciro. Se for o Serra, voto no Serra. Se for Garotinho, faço campanha pelo Lula.

A lista de Souza Dantas, que o Itamaraty quis esquecer

Um bom livro sobre um grande assunto e um grande homem. A história do "Quixote nas Trevas - O Embaixador Souza Dantas e os Refugiados do Nazismo", de Fábio Koifman. Souza-Dantás, como era conhecido em Paris, viveu de 1876 a 1954. Foi embaixador do Brasil na França de 1922 a 1943, e a ele se deve a elegante rebeldia contra o anti-semitismo do Estado Novo, em cuja gordura fritaram-se pedaços das biografias de Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha e Francisco Campos.
Luís Martins de Souza Dantas foi aquilo que todo diplomata gostaria de ter sido. Passou quase toda a carreira na Europa e a maior parte do tempo em Paris. Conhecia todo mundo, sobretudo atrizes. A uma delas presenteou com uma casa de campo. Anos depois, sem dinheiro, viu-a devolver-lhe o valor do mimo.
Fábio Koifman reconstituiu a ação do embaixador salvando judeus durante a Segunda Guerra, época em que se baixaram 12 circulares no Itamaraty e provavelmente outras dez na burocracia federal dificultando e proibindo a entrada no país de pessoas da "raça semítica". Um de seus bons momentos se dá quando o cardeal Sebastião Leme se recusa a interceder por cerca de cem judeus que vagavam há quase um ano em navios com papéis brasileiros que o governo de Vargas considerava "caducos". Eram vistos dados ou mandados revalidar por Souza Dantas. "Questão política", achava o cardeal.
Souza Dantas distribuía vistos diplomáticos, que permitiam aos judeus saírem da França ocupada. É possível que tenha dado mais de mil. Koifman lista, nominalmente, 400 beneficiados. Se não protegeu mais gente, foi porque Oswaldo Aranha negou-lhe a malandragem de dar quantos vistos quisesse para pessoas que se comprometessem a não vir para o Brasil. Sair da França, em muitos casos, era a diferença entre viver e morrer.
Para o bem da história e do Itamaraty, Souza Dantas foi submetido a um inquérito administrativo. O processo começa no fim de 1941 e vai perdendo gás até que Vargas, já em guerra contra a Alemanha, manda-o ao arquivo, preservando os documentos. A essa altura, em agosto de 1942, Souza Dantas denuncia ao Itamaraty "a escravidão e o extermínio" dos judeus.
Em 1951, Dantás foi homenageado em sua cidade. Tinha no salão toda Paris, do primeiro-ministro Georges Bidault à bailarina Mistinguett.
Koifman deu nova vida ao embaixador. Várias vezes ele se pergunta por que Souza Dantas foi levado à "conveniência dos esquecimento". A burocracia brasileira não perdoa o inconformismo. Passados 60 anos, sabe-se que Souza Dantas estava certo, mas convém esquecê-lo porque transgrediu o código da Casa. O Itamaraty de então era elitista, racista e anti-semita. O de hoje pode ser o que quiser, desde que fique calado.
Há mais de meio século murmura-se que o interesse de Souza Dantas pelos judeus vinha do mais simples dos motivos: sua mulher, velha, rica e feia, era judia. Tudo bem, ele se casou aos 58 anos com Elise Meyer, irmã da miliardária Florence Blumenthal e tia de Katherine Graham, dona do "Washington Post". Ela era tudo isso, mas o casamento previa a separação absoluta de bens. Em 1953, quando Elise estava senil e foi levada de volta para os Estados Unidos, Souza Dantas teve que deixar o Ritz, onde vivia, para ir morrer no Grand Hotel.
Foi um valente. Prova disso está numa revelação de Koifman. Em 1941, em pleno Estado Novo, pediu ao Itamaraty autorização para entregar passaportes aos cidadãos brasileiros Davi Capistrano e Dinarco Reis, combatentes da Guerra Civil Espanhola refugiados na França. Oswaldo Aranha deu os passaportes, sabendo que eram militantes do Partido Comunista.
Davi Capistrano foi assassinado pela ditadura em 1974 e seu corpo nunca foi achado. Nessa época, o Itamaraty tinha regredido. Em vez de ter um Souza Dantas dando a proteção do auriverde pendão a estrangeiros, as embaixadas negavam passaportes a brasileiros, mesmo recém-nascidos. Negou-o a um ex-presidente (João Goulart). A lista chamava-se "Fichário de pessoas com registro de atividades nocivas à segurança nacional". Um dia será estudada.



Texto Anterior: Janio de Freitas: Penúltimos sinais
Próximo Texto: 10 anos de impeachment
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.