São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2000

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NO PLANALTO

A economia rosna para a política

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

V irou lugar-comum o bordão segundo o qual é essencial para os partidos políticos e suas lideranças prestar atenção ao "recado das urnas" municipais. Pois, na montagem do xadrez de 2002, ouvir a voz das urnas ou um disco de pagode conduz a um mesmo resultado: a perda de tempo.
O futuro é como tela virgem diante do pintor. Sabe-se que, cedo ou tarde, do branco nascerá uma pintura. Entre um traço e outro, pode-se arriscar um palpite: vai ficar feia, bonita, assim ou assado. Mas nem ao artista é dado adivinhar os contornos finais da própria obra antes dos últimos movimentos do pincel.
Assim também com a sucessão presidencial. Os partidos estão debruçados sobre o rascunho da tela que será levada à grande exposição de 2002. Por ora, há sobre o cavalete apenas um borrão.
Ainda assim, políticos e analistas rufam nas páginas dos jornais e nos microfones previsões para gostos variados. Algumas tratam o imponderável com precisão milimétrica. Outras contemplam a fluidez da cena política. E embutem dentro do prognóstico a desculpa para o próprio fracasso.
Até bem pouco dizia-se que a conjugação de calmaria financeira com retomada do crescimento econômico tonificaria FHC, levando-o a influir na própria sucessão. Porém a atmosfera carregada da semana passada pairava sobre o sonho do tucanato como nuvem carregada em cima de casa destelhada.
Nuvens, como se sabe, são como ciclos econômicos. Vão e vêm. Ora ornam o céu azul, ora cortam o fundo cinza, cuspindo tempestades. A longa estiagem que embala a prosperidade americana leva a que muitos suspeitem que o tempo pode virar. Cedo ou tarde, conjectura-se, descerão os raios.
Na última quinta-feira, um diretor do Banco Central manuseava um recorte de jornal que guarda na gaveta da escrivaninha. Mais do que um pedaço de papel, trata-se de um alerta mantido ao alcance dos dedos. Nele se podia ler uma declaração feita por Alan Greenspan no último dia 12 de julho.
Greenspan, espécie de oráculo da economia globalizada, disse há três meses e meio o seguinte: "É essencial que o atual período de relativa estabilidade internacional seja aproveitado da melhor forma possível para reduzir os riscos potenciais mais evidentes para uma crise".
Como tecelão que trança os fios sem a pretensão de decifrar de véspera todos os mistérios da tapeçaria, o presidente do Federal Reserve disse mais: "Não podemos prever com precisão a natureza da próxima crise financeira internacional. Mas que haverá uma é tão certo quanto a persistente imprudência financeira humana".
O cenário turvo dos últimos dias confere às palavras de Greenspan ares de profecia. Para onde quer que se olhe, enxergam-se sinais de uma crise que se insinua: a Argentina derrete, o Euro murcha, o petróleo ferve, as cotações de Wall Street encolhem, o crédito mundial escasseia...
Os sábios do governo continuam dizendo que o Brasil, portento financeiro que não resiste a um salário mínimo de R$ 180, é firme como rocha vulcânica. Quem for crente que creia. Desde que fique entendido o seguinte: num ambiente permeado por números frágeis, em que fé e realidade interpenetram-se, as palavras que emanam de Brasília valem tanto quanto a vontade dos astros.
Cresce a sensação de que a cartilha da ortodoxia religiosa que guia o tucanato reclama uma flexibilização. Ganha uma cadeira de presidente da República o primeiro que trouxer à boca do palco um modelo alternativo que se aguente em pé. Um modelo que ponha a contabilidade a serviço do ser humano e não o contrário.
Desqualifique-se desde logo, por tola, a fórmula fácil da troca do modelo atual pelo caminho romântico do isolacionismo nacionalista. O mundo exige raciocínios mais sofisticados, e o eleitor merece mais respeito.
Se vier para a campanha trazendo apenas pedras nas mãos, a oposição se arrisca a assumir de novo o papel de urubu sem causa. Está passando da hora de a chamada esquerda aprender que não basta mais bicar o fígado do inimigo. É preciso ter o que dizer. E não se arruma discurso com os ouvidos colados nas urnas da província.
Se o que se busca é entretenimento para os ouvidos, melhor ouvir coisa mais fina -Johann Sebastian Bach, Kathleen Battle, Cole Porter... Se o que se deseja é influir na sucessão de FHC, convém ouvir coisa mais séria -a voz de Greenspan, por exemplo.


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