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IVO CASTELO BRANCO/INFECTOLOGISTA
"Postos de saúde poderiam evitar evolução de casos de dengue"
Consultor brasileiro da OMS sobre a doença afirma que população tem de fazer sua
parte, mas isso não isenta governos de agir
ANTÔNIO GOIS
DA SUCURSAL DO RIO
O número de mortes por dengue hemorrágica no
Brasil poderia ser reduzido significativamente se o
sistema de saúde estivesse mais preparado para o
atendimento primário, realizado principalmente em
postos de saúde. Se bem orientados e monitorados
desde o primeiro dia em que apresenta sintomas da
dengue, poucos pacientes teriam que ser internados e
menos de 1% morreriam.
A análise é do clínico infectologista Ivo Castelo Branco, 53,
professor do Núcleo de Medicina Tropical da Universidade
Federal do Ceará e consultor da
doença para a OMS (Organização Mundial de Saúde).
Segundo ele, a desestruturação do sistema de saúde, aliada
ao despreparo dos médicos para identificar a doença e ao uso
de critérios de diagnóstico rígidos pela OMS, explica por que o
Brasil apresenta taxas de letalidade por dengue hemorrágica
tão superiores às consideradas
adequadas pela organização.
Até setembro deste ano, pouco antes de o ministro José Gomes Temporão (Saúde) ter declarado que o país vivia uma nova epidemia da doença, 1.076
casos de dengue hemorrágica
haviam sido registrados, dos
quais 121 infectados, ou 11% do
total, morreram. A taxa adequada, segundo a OMS, é de 1%.
Para Castelo Branco, a população precisa fazer sua parte no
combate à doença, mas isso não
exime o governo de seu papel
de orientar, treinar e, principalmente, investir em medidas
que diminuam o risco de contágio. Ele lembra que uma das
funções mais importantes do
poder público é o investimento
em saneamento básico. No
Nordeste, por exemplo, o local
mais comum de focos do mosquito transmissor da doença
são as caixas-d'água. Com um
sistema regular de abastecimento de água, lembra, a população não precisaria armazenar, diminuindo o contágio.
O infectologista cita Cuba como modelo de país com bons
resultados, mas lembra que a
experiência não seria facilmente transportada para o Brasil.
"Mesmo que todos os segmentos da sociedade adotem
hoje todas as medidas possíveis
para combater o mosquito
transmissor da doença, ainda
assim não conseguiríamos controlar a epidemia por um prazo
de pelo menos dez anos", diz.
FOLHA - Por que a dengue mata
mais no Brasil do que o tolerado pela
OMS?
IVO CASTELO BRANCO - Em primeiro lugar, isso tem a ver com
os critérios para diagnosticar
dengue que a OMS adota, que
são muito cartesianos. Muitos
casos de dengue hemorrágica
não entram nas estatísticas
porque não atenderam a um
dos critérios definidos pela organização, o que faz com que as
taxas de letalidade aumentem.
No Ceará, por exemplo, tivemos em 1994 uma epidemia
com letalidade de 50% porque,
dos 150 casos suspeitos, apenas
25 atendiam a esses critérios.
Além disso, temos um problema no atendimento primário. De cada 100 casos de dengue, 70 poderiam ser resolvidos com um atendimento primário
num posto de saúde, por exemplo, 25 com atendimento secundário, nos quais seria necessária a realização de exames, e apenas 5 necessitariam de
atendimento terciário, com internação imediata.
Como no Brasil o atendimento primário não é bem estruturado ou a população não acredita nele, quando acontece uma epidemia, a pessoa procura logo um hospital e o profissional,
mesmo que bem preparado, fica sem condições de atender a
todos os casos. Acontece que
não tem UTI para todo mundo
e essa superlotação das emergências faz com que muitos casos que poderiam ter sido evitados com o atendimento primário evoluam para um quadro
mais grave por falta de um bom
tratamento.
Anualmente, eu trato cerca
de 100 casos de dengue hemorrágica. Desses, apenas um ou
outro paciente, às vezes nenhum, acaba tendo que ser internado. Se o sistema público
fosse bem estruturado, muitos
pacientes não estariam hoje superlotando o setor terciário.
FOLHA - Como fazer um bom atendimento?
CASTELO BRANCO - O grande segredo da dengue é que, quando
alguém pega a doença, não se
sabe se ela vai evoluir para a
forma hemorrágica. Todos os
pacientes se queixam inicialmente de febre súbita, dor de
cabeça, muita dor nas juntas,
um quadro infecioso muito parecido com o de outras doenças. A diferença da dengue hemorrágica para o tipo clássico aparece entre o terceiro e o sexto dia, quando a febre baixa e o
paciente tende a ficar melhor.
Porém, se, em vez disso, ele
começar a sentir sintomas como muita dor na barriga, desmaios, vômitos, suadeira fria,
pressão baixa, falta de ar e tosse
constante, é grande a chance de
ser dengue hemorrágica.
Se eu atender bem o paciente
nessa fase, antes de ele começar
a ter hemorragia, consigo dar
um bom tratamento e reduzo a
letalidade a menos de 1%.
FOLHA - Se a dengue é um problema tão sério no Brasil, por que os
médicos não estão preparados para
fazer esse diagnóstico?
CASTELO BRANCO - Primeiro porque se trata de uma doença
muito recente aqui. Ela só começou a fazer parte dos currículos médicos a partir de 1994
ou 1995. Eu estou com quase 30
anos de formado e não tive aulas de dengue na universidade.
Além disso, eu diria que a literatura sobre a dengue no Brasil ainda é muito importada, baseada nas epidemias em Cuba e
na Ásia, que têm peculiaridades
que não são encontradas no
Brasil. Estive, por exemplo, recentemente na Tailândia e fiquei quase três semanas acompanhando os trabalhos em um hospital de Bancoc.
No Brasil, a maior parte dos
pacientes é de adultos, com
mais de 15 anos. Lá, no entanto,
todo dia chegavam de cinco a
dez casos de dengue hemorrágica e praticamente todos eram
de crianças. Isso acontece porque a Ásia já convive com os
quatro tipos de dengue há 50
anos. A maioria dos adultos ou
já teve a doença ou já morreu
dela. Por isso, as crianças ficam
mais suscetíveis.
FOLHA - A tendência é que isso
ocorra também no Brasil?
CASTELO BRANCO- Sim. Estamos
começando a ver aqui mais
crianças apresentando sintomas. E, nesse caso, há um fator
complicante, pois é mais difícil
identificar nelas os sinais de
alarme do que num adulto.
Nem toda criança tem maturidade para descrever sintomas
como dor intensa na barriga ou
tontura, sem falar nas muito
pequenas que ainda estão
aprendendo a falar. É por isso
que muitas chegam aos hospitais já numa fase mais grave da
doença. Nossos pediatras precisarão estar preparados para
identificar esses sintomas.
FOLHA - Quase todos os governos,
sejam eles federal, estaduais ou municipais, repetem o discurso de que,
sem ajuda da população, não há como enfrentar a dengue. Não seria
uma forma de eles tentarem se eximir de suas responsabilidades?
CASTELO BRANCO - Antes de tudo,
precisamos entender que o
combate a dengue não é simples. Mesmo que todos os segmentos da sociedade adotem
hoje todas as medidas possíveis
para combater o mosquito
transmissor da doença [o Aedes
aegypti], ainda assim não conseguiríamos controlar a epidemia por um prazo de pelo menos dez anos.
Isso porque é muito difícil
controlar a reprodução do
mosquito na fase em que a fêmea coloca seu ovo. Ele pode
resistir ao inseticida, ao calor e
sobreviver por mais de um ano,
além de ser transportado facilmente de um local para outro.
Outro complicador do combate à dengue em áreas urbanas é que, mesmo que apenas
1% das casas tenham foco do
Aedes aegypti, ainda assim, correremos o risco de epidemia.
No entanto, principalmente
no caso do Nordeste, sabemos
que os maiores focos do Aedes
são os depósitos de armazenamento de água, muito mais do
que jarrinhas, vasos ou bromélias. No Nordeste, a gente tem
que armazenar água nas casas
por causa da distribuição irregular. Se houvesse um sistema
regular de distribuição, isso poderia ser evitado.
É correto dizer que não existe um único culpado para a
dengue e que a população tem
que fazer a sua parte. Mas isso
não exime o governo de seu
grande papel de ser o orientador das diretrizes, com campanhas de conscientização bem
feitas e treinando bem os profissionais que lidarão com o
problema, além de investindo
em saneamento básico.
FOLHA - Algum país já foi bem sucedido no combate à dengue?
CASTELO BRANCO - Cuba é muito
citado como um caso de sucesso, mas é bom lembrar que se
trata de uma ilha com características próprias. É uma população muito bem educada e um
país onde um fiscal pode entrar
em qualquer residência e revirar a casa. Se ele identificar alguma atitude irresponsável,
pode multar o morador. Pode
ainda entrar sem pedir licença,
com ajuda de um chaveiro.
No Brasil, isso seria obviamente muito mais difícil. É o
que ajuda a explicar, por exemplo, por que temos um índice de
pendência, ou seja, de casas não
visitadas, da ordem de 10%. Geralmente, são pessoas que trabalham o dia todo ou que só
dormem naquele endereço nos
finais de semana. Isso, sem dúvida, dificulta o combate.
No caso brasileiro, em que as
características da epidemia variam muito em cada região, é
interessante olhar para algumas experiências que tiveram
êxito. Há cidades pequenas, por
exemplo, que afixam cartazes
de incentivo ao controle da
dengue em casas onde não foi
encontrado nenhum foco do
mosquito transmissor.
Em um pequeno município
aqui do Ceará, Pedra Branca, o
secretário da Saúde treinou
professoras primárias de um
bairro com altos níveis de infecção e fez um trabalho com os
alunos para que eles examinassem três casas: a deles mesmos
e a de dois vizinhos. Após fazer
esse trabalho, os alunos recebiam uma ficha para concorrer
a uma bicicleta. Em pouco tempo, a prefeitura de lá conseguiu
ter um bom diagnóstico dos focos e controlou a doença.
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