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ARTIGO
O repórter que não se achava jornalista
Ele se autodefinia empresário ou comerciante, mas era um tremendo repórter
Eduardo Knapp - 19.mai.2006/Folha Imagem
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O empresário Octavio Frias visita o Centro Tecnológico Gráfico da Folha, em Tamboré (SP), inaugurado em dezembro de 1995 |
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
OCTAVIO Frias de Oliveira foi o empresário mais
jornalista que jamais conheci, mais jornalista de verdade que muito jornalista diplomado. Era como empresário
ou, às vezes, como comerciante
que se autodefinia, sempre que
as personalidades que visitavam a Folha -e não foram
poucas, de todas as cores e de
todos os calibres- o chamavam de "doutor" ou o tratavam
de jornalista. "Não sou doutor,
não sou jornalista", reagia, no
jeito direto e franco de ser.
Mas era, sim, jornalista, um
tremendo repórter, como fui
descobrindo rapidamente nos
exatos 20 anos de convivência
praticamente diária e próxima,
a partir do instante em que ele
e seu filho, Otavio, diretor de
Redação, me convidaram para
escrever a chamada "coluna
São Paulo", da página 2 da Folha, pouco depois da morte de
Cláudio Abramo, em 1987.
Antes, conheci uma outra faceta que me conquistou de imediato. Comecei na Folha em
1980, no exato momento em
que a extrema-direita cometia
atentados a bomba contra bancas de jornal, escritórios de
oposicionistas e até a Ordem
dos Advogados do Brasil, no
Rio de Janeiro.
Escrevi, apenas semanas depois de contratado, um texto
em que dizia que, se se quisesse
chegar aos autores, bastava bater às portas do DOI-Codi, o
coração do sistema repressivo
montado no regime militar (no
ano seguinte, o atentado frustrado ao Riocentro provou que
a informação era corretíssima).
Na noite em que o texto foi
publicado, "seu" Frias telefonou para minha casa, me oferecendo refúgio em sua granja de
São José dos Campos. Contou
que a reportagem provocara
muito ruído e que talvez fosse
prudente asilar-me por uns
dias. Preferi ficar em casa, mas
me surpreendeu um patrão, tido como duro e inflexível, dar-se ao trabalho de tentar proteger um funcionário que ele
nem sequer conhecia pessoalmente e que havia acabado de
começar na empresa que ele
comandava.
Proteção que continuou ao
longo do tempo. Sei, por terceiras pessoas, jamais por ele, que
houve várias queixas a meu
respeito por parte de autoridades (algumas até amigos pessoais dele). Jamais me transmitiu uma só que fosse.
Durante a ditadura Pinochet,
por exemplo, sei que funcionários diplomáticos chilenos
mais de uma vez estiveram na
Folha para reclamar. A única
vez em que ele se manifestou
sobre os constantes textos que
fazia sobre o Chile foi para dizer que estivera no país e não
vira exatamente o que eu estava
relatando. Mas, acrescentou,
"você é livre para escrever o
que viu".
E continuei escrevendo o que
estava vendo.
Muitos anos depois, Fernando Henrique Cardoso, já ex-presidente, contou que desistira de reclamar do jornal para o
seu "publisher", embora fosse
muito amigo dele: "Com o
Frias, não adianta reclamar".
Já o repórter Frias revelou-se, inicialmente, num "furo"
célebre, o de descobrir que o
mal que levara o presidente
Tancredo Neves ao hospital, na
véspera da posse, era um leiomioma (um tumor, portanto) e
não uma diverculite, como foi
anunciado oficialmente.
Alguns dos repórteres da
própria Folha que acompanhavam o caso em Brasília
acharam que era imprudência
o jornal sair com a manchete
anunciando o leiomioma. Era
"furo", não era imprudência.
Em outro momento, o repórter Frias passou pela minha salinha no nono andar do prédio
da Folha e comentou: "Fulano
me disse que um diretor do
Banco Central está caindo. Vamos apurar".
Não vou contar quem era o
"fulano" porque é, ainda hoje,
figurão importante na República. Como era raro que "seu"
Frias me contasse a fonte de
uma informação sigilosa ou de
bastidor que recebia - e recebia-as por quilo-, imediatamente comentei com ele: "Não
é um diretor, é o presidente do
BC que vai cair" (o presidente
era Gustavo Franco, aquele que
torrou bilhões de dólares das
reservas brasileiras para defender um valor irreal para o real
ante o dólar).
Passei a tarde e parte da noite telefonando para todas as
pessoas que pudessem ter alguma informação. O horário de
fechamento da edição nacional
já havia passado, todos os demais ocupantes do nono andar
já haviam ido embora, e eu não
tinha nada. Até que "seu" Frias
saiu de sua sala, com aquela sanha de repórter de filme de antigamente, com a confirmação:
"O Gustavo já está até limpando as gavetas. Você pode fazer o
texto?".
Fiz. Mas confesso que, como
o pessoal que cobria a internação de Tancredo Neves, tinha
um certo medo de que a informação fosse exagerada, prematura. Tanto que a principal decorrência da queda de Gustavo
Franco - o fim do câmbio fixo
- foi tratada em apenas uma linha da notícia, sem o aprofundamento.
Outro episódio envolvendo o
Banco Central ocorreu no governo Sarney. Eu tinha a informação de que o Brasil transferira suas reservas para um lugar seguro. Era a evidência óbvia de que o país entraria em
moratória, e por isso precisava
pôr as reservas longe do alcance de eventuais tentativas de
confisco.
Estava escrevendo o texto
quando "seu" Frias me chamou
a um almoço no nono andar
(que ainda não era meu habitat) para expor o que eu sabia
aos economistas da casa, muitos deles então membros do
Conselho Editorial. Expus.
Houve uma chuva de dúvidas e
resistências, menos aos fatos
expostos e mais à lógica da moratória. Eu não estava interessado na lógica da moratória,
mas nos fatos.
Logo descobri que "seu"
Frias também queria fatos.
Desci para continuar escrevendo, já meio desanimado, imaginando que o texto não sairia.
Nem meia hora depois, ele me
ligou: "Conferi com fulano a
tua informação. Pode ir em
frente". (Desta vez, não me disse quem era o "fulano".)
Depois, de tanto em tanto, ligava de novo, para passar novas
informações. Tantas informações que o texto ficou enorme,
contrariando aliás o gosto dele
por textos mais curtos.
O gosto pela informação
combinava com o zelo pelo texto dos editoriais, que corrigia,
com os editorialistas, linha por
linha, vírgula por vírgula. Sempre que embatucava com alguma frase que achava pouco clara, usava um bordão: "Será que
sua excelência vai entender?".
("Sua excelência" era a maneira de referir-se ao leitor.)
Já as outras "excelências"
-os presidentes da República-, conheceu-as todas, de Getúlio Vargas em diante. Sem, no
entanto, achar-se ele próprio
"doutor" ou "personalidade".
Seu jeito de ser era tão despojado que permitiu uma cena muito engraçada quando Luiz Inácio Lula da Silva, candidato à
Presidência em 1989, almoçou
na Folha.
Terminado o almoço, longo,
com direito à incomum repetição do cafezinho, estávamos
todos começando a levantar
das cadeiras quando Lula passou o braço em torno dos ombros de "seu" Frias e disse:
"Frias, você ainda vai se orgulhar desse petezinho", como se
estivesse abraçando um entusiasmado militante-fundador
do PT.
Não sei quem fará mais falta
agora, se o repórter Frias ou se
o "publisher" capaz de deixar à
vontade os presidentes e também ficar à vontade com eles,
sem, no entanto, transmitir
suas queixas aos jornalistas.
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