São Paulo, Domingo, 30 de Maio de 1999
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Grampo virgem
A quem interessar possa:
Todas as fitas com a trilha sonora do leilão das teles que apareceram até agora saíram de três ninhos de grampos: o telefone do presidente do BNDES, André Lara Resende, a linha da casa de Elena Landau e um terceiro aparelho, residencial.
Há um quarto grampo, ainda virgem, pois nenhuma de suas fitas foi divulgada. Estava no telefone do diretor financeiro da Previ, João Bosco Madeiro.

Riso mortal
O professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ouvido sobre as fitas do BNDES, admitiu, em tese, que elas possam resultar na abertura de um processo de impedimento do presidente da República.
Em tese, bem entendido, pois ressalvou a origem ilícita da prova.
É um prazer ouvir opiniões desse tipo. Mostram como é bom viver numa democracia, regime no qual um cidadão tem o direito de dizer o que julga certo ou, pelo menos, lógico.
De outubro de 1969 a março de 1974, o professor Manoel Gonçalves foi chefe de gabinete do ministro da Justiça e seu secretário-geral. Chegou a ministro interino por alguns dias.
Seu chefe, o ministro Alfredo Buzaid, dizia coisas assim: "Eu reafirmo que não há tortura no Brasil". Ele próprio informou que os direitos humanos eram um "objetivo nacional permanente".
Nesse período, o aparelho de repressão da ditadura assassinou ou sumiu com pelo menos 194 pessoas (nada a ver com tiroteios). Entre 1970 e o final de 1973, as denúncias de tortura foram 3.479.
Admitindo que tanto ele quanto Buzaid estivessem convencidos do que diziam, bem que poderia ter ocorrido ao professor a idéia de sugerir ao ministro que se discutisse, sempre em tese, o impedimento do presidente Médici.
Teria matado (de rir) o governo a que servia.

Registro
Deve-se registrar que foi a vontade de FFHH quem barrou a possibilidade do retorno ao Palácio do Planalto do ex-secretário-geral da Presidência Eduardo Jorge Caldas.
Ele havia deixado o cargo para trabalhar na campanha pela reeleição de seu velho amigo. Vitorioso, poderia ter voltado às suas funções.

Não mudou
Pouco depois de ter assumido o Ministério da Fazenda, o professor Pedro Malan foi visto no Rio, desembarcando de um avião de carreira. Como um curioso estranhasse a cena, ele explicou:
"O Brasil mudou".
Pode até ser, mas o governo não mudou. Graças a uma iniciativa do deputado Aldo Rebelo, sabe-se agora que o doutor Malan fez 126 viagens nas quais pousou ou decolou do Rio em aviões da Força Aérea. Sempre a serviço.
O que há de estranho nessa estatística é que havia duas vezes mais serviço no Rio do que em todos os Estados da Federação, salvo São Paulo.


Muito grampo, pouco governo


André Lara Resende, FFHH e Luiz Carlos Mendonça de Barros
Alex Freitas
Ao contrário do que disse FFHH, o problema dos grampos do BNDES está muito longe da "leviandade" de "certos setores do país e da oposição". Está longe, porque a leviandade esteve no Planalto. Tanto agora, com os grampos do BNDES, quanto em 1995, com o grampo colocado nos telefones do embaixador Júlio César Gomes dos Santos, chefe do cerimonial da Presidência.
Aos fatos.
Em setembro de 1995, iludindo um juiz, agentes da Polícia Federal, industriados por Francisco Graziano da Silva, presidente do Incra e ex-secretário particular de FFHH, grampearam o embaixador. Produziram um relatório com 13 telefonemas ocorridos entre os dias 2 e 22 de setembro.
Cometeram a indignidade de transcrever conversas do diplomata com sua namorada. No dia 9 de outubro, FFHH recebeu de Graziano (inimigo do embaixador) o dossiê contra o embaixador. Tiveram o seguinte diálogo:
"Ninguém pode saber disso, isso não pode vazar. Quantas pessoas sabem disso?", perguntou o presidente.
"Umas dez pessoas", respondeu Graziano.
"Dez pessoas?! Então vai vazar!", alarmou-se FFHH.
Vazou.
Em vez de demitir Graziano, que se valera de uma falsa acusação de tráfico de drogas para conseguir o grampo, FFHH preferiu dar uma aula aos nativos e disse o seguinte:
"Vamos evitar que este espírito de corvo volte a pousar no país, de ver podridão em tudo".
A podridão estava no Planalto. O corvo era Graziano.
Graziano só foi demitido um mês depois. Socorrido pela confraria tucana, foi nomeado secretário da Agricultura do governo Mário Covas.
Resumo da ópera:
Graziano, que tramitou o grampo de um funcionário do Palácio do Planalto, habitual interlocutor do presidente, ficou numa boa.
Declarou-se vítima e disse que foi envolvido "num episódio cuja única culpa, se tive, foi não ter me preocupado com a origem de um relatório que fiz chegar às mãos do presidente". Relatório, não. Grampo, obtido por meio de uma falcatrua.
Passaram-se três anos e veio o grampo do BNDES.
É indiscutível que os então ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, e presidente do BNDES, André Lara Resende, souberam da existência dos grampos logo depois do leilão das teles, em julho de 1998. Não lhes passou pela cabeça a idéia de chamar a polícia. No final de agosto, a existência dos grampos era um segredo de polichinelo. Nenhuma investigação foi pedida.
Uma amostra das fitas chegou ao Palácio do Planalto em setembro. Segundo o general Alberto Cardoso, foram recolhidas num viaduto da BR-040. Mesmo fazendo de conta que foi assim, FFHH e o general deveriam ter encaminhado as fitas criminosas à Polícia Federal. Não o fizeram.
Pior. O Palácio do Planalto conviveu com as fitas. Só acionou a máquina policial quando sua existência foi revelada pela imprensa. Dias depois, vieram a público os primeiros trechos das fitas. Saíram de onde? Do Palácio do Planalto, pelas mãos de Eduardo Jorge, grão-duque da campanha eleitoral de FFHH e ex-secretário-geral da Presidência. Quem andou convencido disso foi o ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros.
Assim como acontecera em 1995, foi um grão-tucano quem disparou o processo de divulgação das fitas que agora são chamadas de levianas, criminosas e invasoras de privacidade. Nesse vazamento, faltavam os telefonemas de André Lara Resende a FFHH.
Se isso fosse pouco, a linha do inquérito do governo ofendeu a inteligência alheia. O procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, sem saber o que se havia gravado, informou o seguinte:
"A requisição das fitas não tem o objetivo de iniciar nenhum procedimento de investigação em relação ao conteúdo porque elas não têm validade".
Errado. Uma gravação ilegal de telefonema é crime e não constitui, de forma alguma, prova judicial. Mesmo assim, é indício capaz de iniciar uma investigação. Essa é a doutrina americana, a mais rigorosa na punição dos grampeadores. Se alguém manda uma fita ao FBI, ele tenta encarcerar o grampeador, mas investiga a denúncia que eventualmente contenha. Se houver crime e se conseguir provas válidas, vai em frente.
Quando Brindeiro e o governo anistiaram o conteúdo das fitas, ofenderam o bom senso de pessoas que, mesmo condenando os grampos, não são bobas a ponto de achar que as investigações eram desnecessárias.
Agora se vê que os grampeadores trabalhavam na Abin.
Ninguém quer achar que FFHH seja um governante corrupto. Pelo contrário. Ele chegou à Presidência com uma biografia limpa e todo mundo ganha se assim ele vier a deixá-la. O que se pede é que governe.
Tanto no grampo do embaixador quanto no do BNDES, a ilegalidade foi praticada pelos subúrbios do seu governo (subúrbios cujos métodos são sobejamente conhecidos). Nos dois casos, demorou para tomar as providências que a boa norma e a lei recomendam. Em ambos, o Planalto só acordou quando não havia mais o que fazer, pois a imprensa furara o tumor.
Quando FFHH sugere que a Folha de S.Paulo e a imprensa foram levianas ao publicar o conteúdo das fitas, só é possível uma conclusão: a de que deveriam ter se contentado com a versão expurgada.
Muito gogó e pouco trabalho, os males do governo são.


Uma história bonita, sem dinheiro


As coisas boas também acontecem. Há uma geração de estudiosos resgatando a beleza da história do Brasil. Com poucos recursos e a despeito da crise das universidades, consolidou-se no país uma geração de historiadores profissionais. Ela vinha se formando desde a década passada, e hoje é provável que, por seus méritos, a pesquisa histórica nacional esteja chegando a um de seus melhores momentos.
Em outubro passado realizou-se em São Paulo um Encontro Regional de História, e agora a Editora da Universidade do Sagrado Coração acaba de editar o catálogo dos trabalhos acadêmicos apresentados durante a reunião. Somaram mais de 500, juntando obras de professores e de estudantes. É número para ninguém botar defeito.
São obras de qualidade variável, mas pode-se ter certeza de que, na média, estão acima do ministério que anda de jatinho.
A professora Veruschka de Sales Azevedo pesquisou a belle époque na cidade paulista de Franca. Sua colega Margareth Rago, autora de "No Bordel de Madame Pomméry", estudou as representações da noite paulistana nos anos 20. Já a estudante Maria de Lourdes dos Santos ("A Santidade Disputada: O Processo Judicial de Disputa pela Posse do Corpo Sagrado da
Menina Izildinha") recuperou a história da briga judicial da cidade de Monte Alto contra o pai da menina, que pretendeu transferir o seu túmulo para São Paulo. Izildinha é até hoje venerada por milagres que teria praticado.
O professor Vitor Biasoli, com seu trabalho "O Grupo dos 11 Companheiros", desmontou o mito da organização paralegal que o engenheiro Leonel Brizola montou em 1963. Conseguiu assustar a direita, mas não passou de uma irrelevância. Brizola chegou a dizer que tinha 660 mil brasileiros organizados em 60 mil grupos de 11 pessoas. Era fantasia.
Essa geração de historiadores merece amparo. Uma pesquisa de mestrado custa em torno de R$ 18 mil. Um doutorado, R$ 53 mil. As bolsas de estudo oficiais estão curtas. É o caso de pensar no benefício que teriam centenas de cidades brasileiras se os seus pequenos empresários se juntassem, apadrinhando projetos de uma história local que, em muitos casos, contam pedaços das suas vidas.
Em julho realiza-se em Florianópolis a reunião anual de todos os pesquisadores da história brasileira. Reunirá perto de 500 acadêmicos.
Pode parecer exagero, mas uma reunião desse tipo é muito mais profícua do que aqueles jantares anuais que a plutocracia nacional faz em Nova York para homenagear a si própria.


ENTEVISTA

Marcos Coimbra
(48 anos , diretor do Instituto Vox Populi.)
Em abril, FFHH estava com um índice de rejeição de 46%. Em quanto deve estar agora?
Nossas pesquisas indicam que passou um pouco de 50%. É muito alto, sobretudo porque não há caso de governante que tenha chegado a 100%.
Fernando Collor, na antevéspera de seu impedimento, tinha uma rejeição de 64%. José Sarney, na sua pior hora, chegou perto de 60%. Uma rejeição superior a 50% antes do fim do mandato e sem a existência de uma crise política personalizada é coisa muito rara. No caso do presidente, eu acredito que ela deriva de dois fatores. Um é a volta da incerteza. Conseguiu-se a estabilidade da moeda, mas criaram-se novas fontes de insegurança, e a população sente que há uma distância entre as prioridades do governo e a sua lista de dificuldades. É como se o governo tivesse uma agenda, e a população, outra. Ela acha que o governo está alheio aos seus problemas, indiferente. Quando você vê que 26% dos brasileiros acreditam, com respostas espontâneas, que o presidente envergonha o Brasil no exterior, percebe que há uma certa raiva no sentimento popular. É verdade que há uma oposição renitente que gira em torno de 25%, mas ela nunca havia se expressado com tanta virulência.
FFHH sai dessa?
Pode sair, mas dificilmente retornará aos patamares de otimismo que desfrutou. Será um processo lento e dependerá tanto da economia quanto das condições sociais do país. O essencial é que consiga restabelecer a linha de comunicação com a opinião pública. Isso passa pelo entendimento de que ela convive a contragosto com três fortes fatores de ansiedade: o desemprego, a violência urbana e a má qualidade dos serviços públicos. O aposentado ganha mal, precisa de assistência médica, não tem como pagá-la e não confia na medicina pública. O jovem tem saúde, mas não tem perspectiva de emprego. Os dois têm medo de andar na rua. Enquanto isso, o governo fala em coisas como privatização, que não fazem parte do cotidiano dessas pessoas. Pelo contrário. A opinião pública não viu o produto da venda das estatais se transformar em melhoria de sua qualidade de vida.
O senhor não acha que o presidente consumiu o seu primeiro mandato dando atenção excessiva aos resultados das pesquisas, inclusive as suas?
As pesquisas são apenas um instrumento de medida. A sua importância cessa quando elas são confrontadas com o projeto e a ideologia de um governo. Eu acredito que houve uma influência perniciosa das pesquisas no sentido de inibir a capacidade do governo de tomar riscos. Diante delas, o governo recuou, deixando de aproveitar o próprio potencial de seu projeto. Por exemplo: se o presidente tivesse desvalorizado o real no início do ano passado, ele teria ganho a eleição do mesmo jeito. Ou melhor, teria ganho um mandato de melhor qualidade. Houve um momento em que se preferiu trocar a qualidade do mandato pela quantidade dos votos.
Lula era um candidato congelado. O risco que o presidente corria não era de ganhar ou perder. Era ganhar mal, e foi isso que aconteceu. Resultou num segundo mandato que começou com um gosto de fim de governo, como se fosse um imenso quinto ano do governo Sarney. A impopularidade de que o governo padece hoje é a colheita do que semeou no ano passado, evitando riscos.


Hora errada
Um grande momento do doutor Clóvis Carvalho na chefia do Gabinete Civil.
Vendo uma pesquisa com maus números, reclamou:
"E isso lá é hora de fazer pesquisa?".


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