São Paulo, quarta-feira, 30 de junho de 2004

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ELIO GASPARI

A linda galera do Brasil

A ida da seleção brasileira de futebol para uma partida de paz no Haiti é um grande acontecimento da política mundial, um dos maiores da história cultural brasileira, triunfo da galera, de um modo de ser, de um Brasil negro, bem-sucedido e amado. Num mundo em que George Bush manda 150 mil homens para o Iraque em nome da prepotência, o Brasil mandará 22 garotos para Porto Príncipe, muitos deles saídos de bairros pobres, todos parecidos com aqueles "brasileños" que a polícia americana caça pelos desertos da fronteira mexicana. Ou com Fio Maravilha ("nós gostamos de você"), o atacante do Flamengo que, aos 59 anos, entregava pizzas em San Francisco.
É dura a vida dos cosmopolitas brasileiros. Fazem tudo para chegar ao andar de cima internacional e, no mínimo, falta-lhes sorte. O "New York Times" publicou um editorial elogiando um discurso do presidente "José Figueiredo". Era João. O banqueiro David Rockefeller chamou o presidente Fernando Collor de Mello de "caçador de marijuana". Era marajá. Bill Clinton chamou FFHH de Henrique. O mesmo Clinton foi bater bola com Pelé na Mangueira e, como contou Jamelão, ficou "feliz como pinto no lixo".
O embarque da seleção para o jogo da paz será um espetáculo de beleza e triunfo do Brasil do andar de baixo. Se a partida puder arrecadar armas, a seleção pentacampeã terá dado ao mundo um dos seus mais bonitos momentos de poesia.
Linda galera a brasileira. Comeu o seu primeiro bispo, mas o pior momento da vida nacional não se deu num campo de batalha. Aconteceu no dia 16 de julho de 1950, quando Gigghia pegou a bola pela direita e fez 2 a 1 para o Uruguai. Bastava o empate. Foi como Pearl Harbor ou a queda de Paris na memória nacional. Os triunfos brasileiros não têm soldados espetando a bandeira na casa dos outros. Eles estão representados em Bellini, Carlos Alberto ou Cafu, erguendo uma taça. É verdade que a primeira Jules Rimet, guardada na CBF, foi roubada e derretida. Isso não fala mal do Brasil, apenas mostra que coisas incríveis acontecem por aqui. Afinal, comeu-se o bispo.
Há países onde as figuras históricas mais lembradas são um general (Bonaparte), um presidente (Washington) ou um tirano (Mao). Pindorama tem Pelé. São 180 milhões de pessoas incapazes de pensar que exista um Brasil sem ele.
No país dessa linda galera, prosperam expressões derrogatórias, tais como "coisa de primeiro mundo". Supõe-se que uma parte da população viva nesta terra por obrigação, contrafeita. Uma clonagem da Beatriz (Débora Evelyn) de "Celebridade". É comum ouvir que "só no Brasil" se faz isso ou aquilo, como se numa terra linda por natureza vivesse um povo amaldiçoado por Deus. O que o Brasil tem de melhor são as suas coisas do outro mundo. As fitas do Bonfim, as baianas da Mangueira, um garoto qualquer correndo atrás de uma bola na rua, um flanelinha oferecendo-se para guardar o carro, um motoqueiro. São eles que vão ao Haiti carregando a alma de um grande povo que sabe jogar futebol. (Alguém acha que, se a Alemanha tivesse ganhado a Copa, sua seleção estaria convidada para jogar em Porto Príncipe?)
Houve governantes que foram a Estocolmo para assistir à premiação de seus conterrâneos com o Nobel. Há também presidentes ou primeiros-ministros que vão almoçar com suas tropas aquarteladas no exterior, como George Bush e Tony Blair no Iraque. Muito bem fará Lula indo ao jogo da seleção brasileira. Descerá no Haiti como representante da galera.


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