São Paulo, sexta-feira, 31 de maio de 2002

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SEMINÁRIO

Insuficiência de dados confiáveis tende a prejudicar as políticas de combate à miséria no Brasil, dizem especialistas

País desperdiça gasto social, conclui debate

OSCAR PILAGALLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Situado entre os países com pior distribuição de renda e maior índice de desigualdade do mundo, o Brasil é ineficiente no gasto social.
Sem dados confiáveis sobre a miséria, que permitiriam focar o combate à indigência, o país desperdiça recursos. As verbas são parcialmente consumidas antes de atingir o destino final. E o mais grave: prioridades inadequadas apenas perpetuam a pobreza.
Essas são as conclusões do seminário "Combate à fome e à pobreza", realizado esta semana pela Folha e pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), do Ministério do Planejamento.
Para o economista José Márcio Camargo, professor da PUC do Rio de Janeiro, o país ainda não identificou o problema principal. "Os programas sociais focalizam o adulto, enquanto as crianças continuam pobres", disse ele.
Camargo sustenta o argumento com duas comparações: 1) a despesa com aposentadoria representa 12% do PIB (Produto Interno Bruto), enquanto o número de idosos é inferior a 7% da população; e 2) 10% dos idosos vivem em famílias pobres, proporção que sobe a 50% no caso das crianças.
"O país fez a opção pelos idosos, principalmente nos últimos 15 anos", afirmou Camargo, lamentando se tratar de algo que, devido aos direitos adquiridos, é difícil de desfazer. Para ele, centrar a ação social no idoso não resolve a problema da miséria, porque são as crianças pobres de hoje que serão os adultos pobres de amanhã.
A intervenção de Camargo provocou polêmica. A platéia aplaudiu uma síntese crítica do jornalista Gilberto Dimenstein, mediador do evento. "Seria tirar do idoso para dar para a criança", disse.
Os defensores da realocação das verbas sociais admitem que a proposta pode soar perversa, mas afirmam que, dada a restrição orçamentária, não há o que fazer.
O economista Ricardo Paes de Barros, do Ipea, concordou com Camargo. "Os programas sociais no Brasil têm um viés intergeracional pesado." Ele avalia que a aposentadoria rural não tem o mesmo caráter de investimento da bolsa-escola. Segundo Paes de Barros, o desconhecimento do problema social pode gerar distorções na canalização das verbas.
O economista acredita que, para se usar bem as verbas, é preciso ter em mente que a fome é muito menor do que a extrema pobreza. "Metade dos municípios mais pobres não estão entre aqueles com maior taxa de subnutrição, pois criaram redes informais de proteção social", afirmou. A constatação da existência de um grau de solidariedade que faz com que a fome seja menor do que sugerem os indicadores de renda coloca em xeque a bolsa-alimentação como política social compensatória.
Para Paes de Barros, a proporção real do problema da fome no país só seria conhecida com um censo antropométrico, que coletasse dados sobre peso, altura e índice de massa corporal da população. Sem instrumentos estatísticos como esse, o país continuará condenado a gastar mal com políticas sociais.
Se o Brasil não tem um problema de grandes dimensões com a fome, o mesmo não se pode dizer em relação à desnutrição. Na avaliação de Carlos Augusto Monteiro, nutrólogo da USP, a questão não é tanto a falta de alimento. "Temos um problema de desnutrição associado à qualidade da alimentação e a doenças infecciosas, que podem determinar um mau aproveitamento biológico dos alimentos ingeridos", disse.

A dança dos números
A visualização do quadro social depende mais da percepção dos especialistas do que das estatísticas. O país não sabe nem qual é a população de indigentes.
Devido à utilização de metodologias diferentes, os cálculos apontam enormes divergências.
Por um critério internacional, endossado pelo Banco Mundial, o Brasil teria 15 milhões de miseráveis (9% da população). São pessoas cuja renda não ultrapassa o equivalente a um dólar por dia.
O Ipea trabalha com a hipótese de 22 milhões de indigentes (13% da população). Chegou a esse número traçando uma linha abaixo da família mais pobre que satisfaz seu requerimento nutricional.
O Instituto Cidadania, ONG do presidenciável petista Luiz Inácio Lula da Silva, fala em 44 milhões (26% da população).
O Centro de Políticas Sociais da FGV tem o número mais alto: 50 milhões de pessoas extremamente pobres (29,3% da população).
"A definição da linha de pobreza tem um quê de arbitrariedade", afirmou Mauro Del Grossi, professor do Instituto de Agronomia do Paraná. Todos concordaram.
Para Marcelo Neri, da FGV, o importante é o país adotar um número oficial, qualquer que seja ele. "Sem isso, vamos continuar andando em círculos", afirmou. Neri disse não haver um número certo ou errado. "Depende da percepção do que é justo."
O economista da FGV provocou polêmica ao afirmar que a definição da linha depende da ética do pesquisador e da instituição. "A linha mais ética não é necessariamente a linha mais alta", reagiu o presidente do Ipea, Roberto Martins. "Falei ética no sentido de julgamento de valor", disse Neri.
Oded Grajew, diretor-presidente do Instituto Ethos, que reúne empresas dispostas a assumir alguma responsabilidade social, foi o único a mencionar a questão política. Para ele, a ação social deve estar associada ao questionamento do modelo econômico, que é concentrador de renda.
Participaram ainda do debate, que também teve a mediação de Anna Peliano, coordenadora de Projetos Especiais do Ipea: Chico Ferreira, economista da PUC-RJ, e Denise Coitinho, coordenadora da área técnica de alimentação e nutrição do Ministério da Saúde.



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