São Paulo, domingo, 31 de julho de 2005

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ESCÂNDALO DO "MENSALÃO"/ RUMO A 2006

Prefeito é ambíguo ao responder se pretende exercer seu mandato até o final e enumera várias tarefas para o sucessor de Lula

"Governo do PT acabou sem ter começado"

DA REDAÇÃO

O prefeito José Serra afirma que hoje seguiria os 67% dos paulistanos que, segundo o Datafolha, não gostariam de vê-lo abandonar o mandato no meio para concorrer à Presidência em 2006. Mas deixa claro: essa é sua posição "hoje": "Fico contente quando apareço bem em pesquisas e até gosto que os institutos ponham o meu nome", diz.
A promessa de permanecer na prefeitura não o impede, porém, de enumerar quais seriam as tarefas do sucessor de Lula. Da mudança da política econômica à redefinição das agências reguladoras, o tucano esboça diretrizes de governo. Ao mesmo tempo diz que a gestão de Lula, do ponto de vista das realizações, "acabou": "É como a Inês de Castro, do Camões: foi sem nunca ter sido".
(FBS e RL)
 

Folha - O sr. acredita em uma guinada do governo Lula rumo ao modelo representado por Hugo Chávez na Venezuela?
Serra -
O chavismo é inviável no Brasil. Primeiro: se tentar, vai contaminar a economia. Segundo: não vai conseguir. Essas manifestações do Lula e de outros que acusam as elites encontram repercussão junto a uma claque organizada, não nas massas.
O PT tinha quatro componentes na sua formação: intelectuais, militantes de tradição bolchevista, sindicalistas e igreja, com as Comunidades Eclesiais de Base.
As CEBs estão desembarcando. Os intelectuais estão desembarcando ou se calando. Com eles, está acontecendo algo parecido ao ocorrido com os intelectuais depois do 20º Congresso na União Soviética, em 1956, quando Khruschov denunciou o stalinismo. Houve um esvaziamento gradual. A fala do Roberto Jefferson acabou tendo um impacto sobre a vida do PT semelhante ao do relatório do Khruschov para o stalinismo. Como dizia Marx, a história só se repete como farsa.
O componente sindical era especialmente da área pública, e continua relativamente forte. Na militância tradicional bolchevique, os que não mudaram de lado estão contra, e os que fizeram a nova classe estão alijados. Imaginar que algo assim possa mobilizar massas à la chavismo é ilusão. Se o populismo fosse fácil, Lula e o PT teriam embarcado nele.
Outro problema do governo do PT é que eles traíram o seu ideário, foram para o outro lado e não ofereceram um substituto. É como se o governo nunca tivesse começado. Agora, com três CPIs, eles vão só lidar com essa situação até o fim. Do ponto de realizações, o governo Lula acabou. É como a Inês de Castro, do Camões: aquela que foi sem nunca ter sido. O governo acabou sem começar.

Folha - O governo Lula tem, no entanto, resultados positivos a exibir na área econômica.
Serra -
Alguns dos dados positivos que estão aí se devem à sorte de ter aparecido o Palocci -não que a política econômica esteja certa, mas dá uma estabilidade- e à melhor conjuntura internacional desde a crise de 1929.
O governo FHC enfrentou seis crises externas: México, Sudeste Asiático, Rússia, Argentina, 11 de Setembro e a gerada pela expectativa da eleição do Lula.
Em quase três anos, eles tiveram a maior bonança externa desde os anos 20. E nessa festa nós fomos o primo pobre: no primeiro ano não cresceu; no ano passado, cresceu, mas menos do que o resto da América Latina.

Folha - O que explica a relativa preservação da figura de Lula, ainda não contaminada pela crise?
Serra -
A grande lealdade a ele do pessoal que caiu em desgraça pública, a inexistência de uma oposição parecida a que o PT fazia e a estratégia de grande advogado criminalista do Márcio Thomaz Bastos. Além disso, na crise do Collor, havia dois belzebus: ele e o PC Farias. Agora, os belzebus são muitos. É explicável que o Lula fique mais preservado, que seu desgaste seja mais lento. Não dá para concluir daí que o índice de contaminação vai permanecer baixo para sempre.

Folha - O presidente é um candidato forte em 2006?
Serra -
O Lula teve em 2002 três fatores altamente favoráveis que não vão estar presentes no ano que vem. Primeiro: todos o pouparam. No ano que vem, a tendência é estarem todos contra ele. Segundo: o Fernando Henrique era o culpado de tudo. Agora, a conversa da herança maldita não vai colar mais. Terceiro: podia propor qualquer coisa, do Fome Zero aos dez milhões de empregos. Acho que o Lula sempre será um candidato forte. É preciso apenas considerar que ele não terá, no ano que vem, condições sequer parecidas com as de 2002.

Folha - O sr. acredita na possibilidade de impeachment?
Serra -
Não me sinto em condições de prever até onde isso vai chegar. Tudo depende dos desdobramentos. Quem achar que tem claro o que vai acontecer é porque não está entendendo nada.

Folha - Fala-se de um grande acordo para circunscrever o escândalo e preservar Lula.
Serra -
Não há acordos possíveis dessa natureza, nem de um lado nem de outro. Se a oposição se reunir para fazer o impeachment ou para evitar o impeachment, esses acordos serão fúteis.

Folha - Em pesquisa Datafolha, 67% dizem que o sr. não deveria se afastar da prefeitura para ser candidato a presidente, e quase 30% avaliam que o sr. deveria se afastar. Do total, 50% acreditam que o sr. vai efetivamente sair para concorrer em 2006. Como reage a isso?
Serra -
Se eu fosse perguntado, estaria hoje do lado dos 67%. E não estaria do lado dos 50% que acham que eu vou me afastar.

Folha - O sr descarta uma eventual candidatura presidencial?
Serra -
Fico contente quando apareço bem em pesquisas e até gosto que os institutos ponham o meu nome. Mas entre pesquisa boa e candidatura há uma distância enorme, que teria de ser percorrida e que ainda não foi.

Folha - O fato de o sr. ter afirmado em campanha que cumpriria seu mandato de prefeito até o final é um fator impeditivo de sua candidatura presidencial?
Serra -
Eu disse o que pensava naquele momento. Mas o maior fator impeditivo é que eu gosto do trabalho na prefeitura e acho que há coisas muito importantes em andamento. E, segundo, não sou a única alternativa do meu partido. Há outras, conhecidas e boas.

Folha - A eleição de 2006 se decidirá entre PT e PSDB ou há espaço para uma surpresa?
Serra -
É um equívoco pensar que, se o PT desce, o PSDB automaticamente sobe, como se fosse um elevador e seu contrapeso. É uma análise mecanicista. Como também é a oposta: os dois são iguais e, portanto, o país vai revogar a predominância dos dois.

Folha - Qual será o principal desafio do próximo presidente?
Serra -
Acho que as tarefas do próximo presidente vão ser de grande envergadura. Primeiro, terá de capitanear uma restauração moral da administração pública e da política. Segundo, terá de reconstruir a política econômica, resolvendo o impasse câmbio-juros, o que não é fácil. Conheço bons economistas que acham que a economia poderia ter o mesmo nível de estabilidade com uma taxa de juro real de 7% ou 8%, que já é alta, e com uma taxa de câmbio de R$ 3,00. O grande problema é fazer a transição de uma margem a outra sem que a economia seja tragada pela correnteza.
Terá de refazer, além disso, as agências, a máquina pública que foi deteriorada ainda mais pelo loteamento político, pela ocupação partidarizada, melhorar a qualidade da gestão. Tem de completar áreas de privatização. Não se justifica, por exemplo, o governo ter o IRB na mão. Tem de melhorar os marcos legais de funcionamento dos fundos de pensão de empresas públicas. Tem ainda de resolver o problema do Mercosul, porque tudo de problemático no Mercosul foi empurrado com a barriga.
O próximo governo terá também que encontrar um padrão decente de relacionamento do Executivo com o Legislativo. Terá de encaminhar mudanças no sistema político-eleitoral.

Folha - Este último tema está em pauta, mas não parece diversionismo introduzi-lo agora?
Serra -
Temos o sistema eleitoral mais aberrante do mundo, em matéria de individualismo e de custos. Mudanças são fundamentais. Eu só tenho dúvidas se neste momento, no bojo da crise, há condição de fazer. Seria de fato interpretado como diversionismo, porque a agenda positiva hoje é investigar, não tem outra.
Mas que é essencial, é, inclusive para a questão do financiamento público de campanha, que eu acho uma falsa panacéia. O problema de financiamento eleitoral existe em toda parte, mas no Brasil ele é mais grave que a média.
A questão dos custos de campanha é eternamente deixada de lado. Preocupação legítima com financiamento tem de passar pela redução de custos. Há dois fatores críticos: sistema eleitoral e programa de televisão.
O sistema eleitoral é o mais caro do mundo. Por exemplo: em São Paulo, um vereador procura voto junto a sete milhões de eleitores. A campanha fica caríssima. Um deputado federal procura voto junto a 24 milhões de eleitores. Outros Estados são menos populosos, mas a situação não é muito diferente. Esse sistema é caríssimo, e é uma eleição individual.
Eu sempre defendi o sistema distrital, que barateia na hora. Calculo que poderia reduzir de cinco a dez vezes a despesa média para o candidato. No caso das cidades, é óbvio que deveria ser um sistema distrital. Um vereador de São Paulo seria eleito junto a 150 mil eleitores. E teria ainda a vantagem de controlar o eleito, o mandato, puni-lo na eleição seguinte se for o caso.

Folha - O sr. acha o sistema de listas partidárias melhor que o atual?
Serra -
Eu acho que sim. Não é tão bom quanto o distrital, mas é melhor que o atual. Muitos críticos desse sistema deixam de lado a questão dos custos para enfatizar que ele significaria o domínio da oligarquia partidária, que o eleitor não iria escolher o seu parlamentar. Como se a qualidade do Congresso pudesse ser pior com o sistema de lista do que com o atual. No entanto, se a lista não tiver, na parte de cima, nomes que a sociedade acolha, você não vai ter votos. Suponha que, ao terminar meu mandato, em 2010 eu vá ser candidato. Eu poderia ser candidato puxando a lista de deputados. Você valoriza o Parlamento.
Segundo ponto: horário gratuito. Do jeito que está, é disparado o componente que inflaciona os custos de campanha. É feito por setores especializados, com características fortes de monopólio na formação dos preços. O horário eleitoral deve ser mantido, mas só com os candidatos no estúdio, sem produção. É possível que ele fique mais chato, mas a política é chata mesmo. Isso reduziria verticalmente os custos. É uma mudança que está ao nosso alcance fazer. O melhor de tudo seria o parlamentarismo, mas essa é uma questão que no atual contexto não deve ser colocada.

Folha - O sr. é favorável ao fim da possibilidade de reeleição?
Serra -
É sabido que eu sou contra a reeleição. Não funciona. Seria melhor ter um mandato de cinco ou seis anos sem reeleição. Mas introduzir essa discussão agora seria perturbador.
Aliás, todas as iniciativas de mudanças políticas fundamentais só podem partir do governo, do próprio Lula. Qualquer outra iniciativa seria encarada como golpismo. Além disso, sem o peso do governo, será ocioso propor.

Folha - O sr. considera as reformas ociosas ou irrelevantes?
Serra -
Nem uma coisa nem outra, mas transformá-las em condição anterior e superior a tudo só serve como pretexto para não governar. Não sabe o que fazer no governo? Diga então "tudo vem depois das reformas". E, enquanto não chegam, você está escorado no pretexto de que elas ainda não aconteceram. Sempre haverá alguém disposto a dizer "mas ainda falta fazer tal coisa". Esse fetiche das reformas reflete, na verdade, a incompetência e a falta de clareza de como levar o país.

Folha - O sr. recebeu uma avaliação popular bastante negativa ao completar três meses de mandato. A que atribuiu a melhora verificada na avaliação dos seis meses?
Serra -
É muito difícil dizer sem perguntar para os eleitores. Acho que tem tido um peso a nossa ação administrativa, a atitude de trabalho e a melhoria de serviços como a limpeza pública e a saúde.
Conseguimos dar uma certa ordem financeira à prefeitura, o que é fundamental. E, pouco a pouco, estamos retomando o ritmo de trabalho que a cidade exige. Estamos fazendo um esforço enorme para aumentar a arrecadação sem aumentar taxas -pelo contrário, mandamos mensagem para a Câmara acabando com a do lixo.
Acho que o que fizemos de mais importante na área financeira foi a redução de custos. Reduzimos em 8% o preço dos uniformes, reduzimos o preço da merenda.
O curioso é que a área da saúde, a mais bem avaliada, é também a pior. Acho o resultado previsível, porque estamos avançando. Não resolvemos todos os problemas, mas estamos melhorando.


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