São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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ARTIGO

Onde mora a rejeição a Marta?

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Por que tanta rejeição a Marta Suplicy? Sua administração foi bem avaliada nas pesquisas. Para não votar nela, evocam-se argumentos de ordem pessoal. Ela é arrogante. Ela largou do Suplicy. Ela preferiu o Favre. Ela usa botox. Ela -digamos de uma vez- é perua.
Também a criticam pela criação de novas taxas, por não ter acabado com as escolas de lata e pela recém-descoberta circunstância de que "fez pouco pela saúde" -o que, pensando bem, é até um elogio, pois significa que sua atuação em outras áreas foi bastante expressiva. Um de seus grandes méritos, aliás, foi o de mostrar que Maluf não é o único "que faz".
Acontece que a qualidade da administração não está muito em pauta. O excesso de taxas ou as falhas na saúde parecem quase um pretexto para quem não ia mesmo votar nela. O que conta é sua arrogância. Sua peruíce.
Esses dois conceitos merecem ser analisados. Acho que refletem um componente ideológico, uma preferência política, e não só uma questão pessoal.
"Marta é arrogante": contudo, Maluf é arrogante, Fernando Henrique não prima pela modéstia, Collor era de uma soberba total, e quem rejeita Marta não necessariamente deixou de votar nessas figuras.
Um dos momentos mais arrogantes de Marta, aliás, remonta à campanha anterior. Foi quando a candidata do PT mandou Maluf calar a boca, chamando-o de "nefasto". A atitude, naquele momento, rendeu-lhe votos: talvez tenha sido eleita justamente por ser capaz de enfrentar Maluf sem papas na língua, com superioridades de madame.
Creio que, uma vez na prefeitura, Marta se convenceu de que o ar de classe alta, em vez de suscitar antipatias, era fonte de autoridade, de prestígio e de respeito num ambiente francamente conservador como o paulistano.
Não importava muito assumir essa característica (que, de resto, era sua mesmo), se, na prática, na realidade administrativa, ela se voltasse para os mais pobres (o que, de resto, ela fez).
Esse talvez tenha sido o seu maior erro de avaliação. Pois uma coisa que sempre se verá com desconfiança é um grã-fino de esquerda. Parece diletantismo de quem não sabe como é árdua a luta pela vida. Parece provocação.
Luxo revoltante, o de ter boa consciência sem deixar de freqüentar restaurantes cinco estrelas. E ainda dizer com desprezo: "Se eu, que vivo nas altas rodas, posso ter consciência social, como é que você, um classe-média bem breguinha, não se toca?"
Sim, o Eduardo Suplicy é rico e de esquerda. Mas perdoam-no, dado seu misto de santidade e alopramento.
Largando de Suplicy e ficando com Favre, Marta abandona a única coisa que a desculpava aos olhos da classe média conservadora: o espírito de sacrifício na vida doméstica, a inocência de ser rico sem saber para o que isso serve. Marta mostrou ser dona do seu nariz e não estar disposta a abandonar os seus gostos e desejos. Logo, é arrogante.
O rótulo tem outro aspecto. Não só ela não se importou com a repercussão negativa de suas toaletes -acreditando que os ares de direita a liberavam para ser de esquerda- como também se esforçou por seguir um vocabulário malufista na exibição de obras na região mais rica. O cidadão que vive entre a Rebouças e o Shopping Iguatemi, infernizado pela paralisação do trânsito, talvez tenha sentido que, a toque de caixa, Marta esfregava em seu nariz realizações para malufista nenhum botar defeito.
"É isso o que vocês querem, não é? Fiquem sabendo do que eu também sou capaz." Havia um componente quase fálico nessa ostentação de proezas de engenharia. O que se perdoava em Maluf parecia impositivo, ilegítimo numa administração de uma mulher petista.
Um adesivo de Serra diz tudo, a meu ver, sobre essa eleição: o candidato tucano é o "prefeito da gente". Isto é, não é o prefeito "deles", os manos da periferia. Nem "delas", as consumidoras da Daslu. Uma prefeita de classe alta faz e acontece nas regiões mais desassistidas da cidade: isso é ostentação, arrogância, coisa de perua; uma prefeita petista faz túneis na áreas ricas, pára o nosso trânsito, planta coqueiros que ninguém pediu: isso é um abuso, é uma violência contra a propriedade privada. Entre os ricos e a periferia, uma parcela da classe média se sente especialmente ofendida, como se incorporasse toda a raiva que Eduardo não sentiu. Diz então, com entonações de radionovela: "Marta, tu me traíste". Pérfida mulher.


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