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O iconoclasta
Linguista americano conta em livro como uma tribo do Amazonas
o transformou de missionário evangélico em cientista ateu, e como
as peculiaridades da língua dessa tribo podem pôr em questão a
teoria mais famosa da linguística, a Gramática Universal de Chomsky
CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA
O americano Daniel
Everett, 55, negou
Deus por duas vezes. Primeiro o
Deus literal, cristão, cuja inexistência declarou
depois de conviver por décadas
com os índios pirahãs, do Amazonas, com o propósito inicial
-frustrado- de traduzir a Bíblia para a sua língua. Depois, o
deus dos intelectuais, Noam
Chomsky, cuja Gramática Universal, a mais ilustre de todas
as teorias linguísticas, passou a
ser questionada por Everett
justamente por causa de peculiaridades do idioma pirahã.
Professor da Universidade
do Estado de Illinois, Everett
tem protagonizado nos últimos
anos uma verdadeira guerra
com os linguistas da escola de
Chomsky, os generativistas.
Ele afirma que seus estudos sobre a língua pirahã -iniciados
em 1977 quando ele veio para o
Brasil a serviço da organização
missionária Summer Institute
of Linguistics, ou SIL- derrubam a Gramática Universal por
uma série de fatores.
O idioma pirahã, diz Everett,
não partilha supostos universais linguísticos tidos como essenciais para a Gramática Universal, segundo a qual a biologia humana molda a linguagem
e a variação gramatical possível
nas diferentes línguas. O principal ponto é a alegada falta de
recursividade do pirahã, ou seja, a capacidade de formar frases infinitamente longas encaixando elementos um no outro.
No fim do ano passado, Everett lançou no Reino Unido o livro "Don't Sleep, There Are
Snakes" ("Não Durma, Aqui
Tem Cobra"), no qual desenvolve mais amplamente, para o
público leigo, sua tese.
A obra vai muito além da linguística. Ele narra sua trajetória de três décadas entre a tribo, uma verdadeira saga que
envolveu mudar-se com a mulher e três filhos pequenos dos
EUA para o meio da selva, uma
crise de malária que o fez remar por horas e viajar por dias
de barco para salvar sua mulher (que insistia para ficar na
aldeia, esperando que Deus a
curasse) e ameaças de morte. E
todo o processo que o fez se
transformar de missionário
evangélico em cientista ateu.
É cedo para dizer se as ideias
de Everett representam um
golpe mortal para a teoria
chomskiana. (Não seria de todo
impensável: o próprio
Chomsky protagonizou um
episódio desses, quando pôs
abaixo em 1959, com um único
artigo, toda a psicologia behaviorista de B. F. Skinner.)
"Don't Sleep, There Are Snakes" não avança nesse sentido.
No entanto, é um livro que precisa ganhar logo uma versão
brasileira, por conta do olhar
perspicaz de Everett sobre a vida na Amazônia.
Enquanto militares e ministros do Supremo discutem se
as terras indígenas representam perda de soberania sobre a
floresta, Everett e outros "gringos" que escrevem bons livros
a respeito da região acabam
por internacionalizá-la metaforicamente, ao aproximá-la
do coração e da mente de seus
leitores... em inglês.
De seu escritório em Illinois,
falando um português com sotaque manauara, Everett deu a
seguinte entrevista à Folha:
FOLHA - O sr. entrou na Amazônia
como um missionário cristão e saiu
de lá como um cientista ateu. Como
aconteceu essa "desconversão"?
DANIEL EVERETT - Eu nunca me
converti até os 17 anos, quando
comecei a namorar uma filha
de missionários. Eles me falaram sobre as necessidades dos
índios do Amazonas. Eu, como
novo cristão, pensei que isso
seria melhor que ficar nos
EUA. Em 1978 eu fui para a
Unicamp fazer mestrado, e obviamente não tem muito fundamentalista lá. E comecei a
admirar muito o Aryon [Rodrigues, orientador de mestrado
de Everett e principal estudioso de línguas indígenas do Brasil, hoje na UnB]. Uma vez ele
me convidou para uma palestra
que o Darcy Ribeiro foi dar na
Unicamp quando voltou do exílio. A ideia de chegar para o
Darcy Ribeiro e dizer que ele ia
para o inferno sem Jesus Cristo
parecia tão ridícula que eu comecei a pensar sobre essas
crenças. Quando comecei a falar com os pirahãs, fiquei no
meio do mato conversando
com um grupo de pessoas que
nunca manifestaram interesse
nesse Deus do qual eu falava.
Pensei: "O que eu estou dizendo realmente deve ser muito irrelevante para eles". E finalmente eu vi que intelectualmente eu não podia mais sustentar essa crença em mim.
FOLHA - Como é a sua relação com
os missionários do SIL hoje?
EVERETT - Tenho relação próxima apenas com minha filha é
missionária lá, e o Steve Sheldon, que trabalhava entre os pirahãs antes de mim. Eles não
viraram meus inimigos, mas
sou contra o trabalho Minha filha e eu não falamos sobre isso.
A ideia de chegar para o Darcy Ribeiro e dizer que ele ia para o inferno sem Jesus Cristo parecia tão ridícula que eu comecei a pensar sobre essas crenças
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FOLHA - O sr. conhece algum caso
de evangelização que tenha sido danoso para os índios?
EVERETT - Você tem entre os índios banawás e os índios jamamadis os missionários mais
conservadores. Os banawás tiveram um casal pentecostal entre eles e um casal do SIL. Você
tinha dois casais de missionários num grupo de 79 pessoas.
É demais. Você tinha índios
que achavam que Deus ia curar
picada de cobra, malária, essas
coisas. Os missionários sempre
justificam sua presença nas aldeias pelo trabalho médico.
Hoje, com a Funasa assumindo
um papel importante nas aldeias, eu não vejo nem essa necessidade para os missionários.
Acho que pregação, traduções,
"testemunhos" etc. são superstições e não vejo como superstições podem ajudar os índios.
É a mesma coisa de dizer que os
índios não podem viver bem
sem crer em Papai Noel.
FOLHA - O sr. publicou suas conclusões sobre a língua pirahã num livro
para o público leigo, quando o procedimento padrão é publicar em um
periódico científico. O livro vem em
vez de uma publicação científica ou
além dela?
EVERETT - Além. Vai sair em setembro. A revista "Language", a
mais importante da linguística
dos EUA, terá um artigo de 50
páginas atacando meu trabalho
e uma resposta minha do mesmo tamanho. Eu não considero
meu livro um livro principalmente linguístico. Ele trata de
aspectos da minha vida e da minha interação com os pirahãs.
FOLHA - Qual é sua crítica à Gramática Universal de Noam Chomsky?
EVERETT - A Gramática Universal tem muitas formas. Se você
tomar a ultima versão dela, nas
formulações mais recentes do
Chomsky, a GU (Gramática
Universal) é a "teoria verdadeira da base biológica da gramática". Bom, se aceitarmos isso, a
proposta perde todo o interesse, porque ninguém duvida de
que os humanos têm uma biologia que é responsável pela linguagem. Mas as versões anteriores atribuíam princípios e
parâmetros à Gramática Universal. No trabalho com Tecumseh Fitch e Marc Hauser
[de 2003], Chomsky fala ainda
de outros conceitos, a Faculdade Ampla da Linguagem e a Faculdade Estrita. Eles dizem que
"talvez" a única característica
específica da faculdade estrita
seja a recursividade. Isso faria
parte dos genes. Tudo bem. Então, digamos que haja uma língua sem recursividade -candidatos além do pirahã incluem o
nunggubuyu, da Austrália, e o
hixkaryana, do Brasil. Bom,
Chomsky diz que nem todas as
línguas são obrigadas a manifestar a recursividade. Mas, se
existe uma língua sem ela, poderia haver duas? Três? Se uma
língua pode existir sem recursividade, todas poderiam. Então
que sentido faz dizer que recursividade é fundamental mas
não é obrigatória?
FOLHA - Como a academia tem
reagido às suas ideias?
EVERETT - Você tem quatro tipos de reação. Há pessoas que
não gostam de Chomsky e vão
aceitar qualquer argumento
contra Chomsky; você tem os
chomskianos, que não vão aceitar de jeito nenhum um ataque
à Gramática Universal; você
tem pessoas que têm inveja, ou
reagem mal, a toda a publicidade que eu venho recebendo; e
tem pessoas que querem saber
onde estão os dados. Esta é a
reação mais saudável.
FOLHA - O sr. diz que o pirahã é
uma língua única, que coloca em
questão a teoria chomskiana. E, ao
mesmo tempo, diz ser o único não-pirahã a dominar a língua. Então a
questão permanecerá em aberto
até alguém mais aprender a língua e
confirmar ou não os seus achados.
EVERETT - Ou até um pirahã fazer um doutorado em linguística. Eu já levei pessoas para fazer experiências. Há 20 anos,
quando eu publiquei um artigo
sobre o sistema de acentuação
na língua pirahã, isso criou uma
controvérsia na linguística. Então o maior foneticista do mundo, Peter Ladefoged, foi comigo
para a aldeia, fez testes e agora
isso é aceito entre os linguistas.
Há maneiras de fazer a experiência sem usar a língua, ou
usando a língua muito pouco.
Minha hipótese é falseável. Você tem de planejar as experiências, ir lá fazer e contar a história. Mas é difícil. Eu já trabalhei
com vários grupos indígenas do
Brasil e os pirahãs são o único
grupo com o qual eu não posso
trabalhar usando o português.
É falseável, mas não vai ser fácil. Eu sei que não vai ter uma
aceitação de 100% dos linguistas. Mas eu não acho que os pirahãs sejam um caso único em
tudo. Estou dizendo que é um
caso primeiro de um contraexemplo da teoria de Chomsky.
FOLHA - Chomsky diz que o sr. entendeu tudo errado.
EVERETT - Meu primeiro aluno
de doutorado foi o professor Ed
Gibson, que trabalha no departamento do Chomsky no MIT.
Ele não conseguiu esse emprego porque teve uma má orientação. Eu passei um ano com o
Chomsky e em todos os anos
em que eu praticava a teoria generativa o Chomsky me deu
cartas de recomendação. Só
agora, que eu estou tentando
dizer que ele está errado, é que
eu não entendo a teoria.
FOLHA - O sr. diz que os pirahãs são
monoglotas, mas eles estão em contato há 200 anos. Como é possível?
EVERETT - Alguns pirahãs falam
um pouquinho de português,
ainda mais os termos de troca.
Mas tem outro fenômeno interessante: às vezes, quando os
pirahãs falam com um comerciante, eles usam palavras da
língua geral, e o comerciante
responde em língua geral [mistura de tupi, português e outras
línguas amazônicas]. O comerciante acha que está falando pirahã e o pirahã acha que está falando português.
FOLHA - O sr. apresenta no livro
uma ideia chamada "princípio da
experiência imediata", segundo o
qual o ambiente torna a gramática
pirahã tão peculiar. Mas há várias
outras tribos que compartilham esse ambiente e não têm essa mesma
limitação gramatical.
EVERETT - Essa preocupação
com a experiência é comum na
Amazônia. Os pirahãs a valorizam mais que outros grupos. A
evidência é esse termo que eu
menciono no livro, "xibipíío"
(pronuncia-se " "ibipíu"), algo
que entra ou sai da experiência
imediata. Esse é um termo que
eu nunca vi em nenhuma outra
língua amazônica. Digamos
que haja um certo número de
coisas do ambiente que são comuns a todas as línguas amazônicas. Entre elas, cada língua
tem o direito de valorizar ou ordenar as coisas de forma diferente. Uma cultura pode dizer
que a experiência imediata é
importante, mas é colocada
num degrau mais baixo da escala de valores. Os pirahãs colocam esse princípio, que é compartilhado com outros grupos
amazônicos, muito alto na escala de valores deles. E isso explica coisas muito particulares
da cultura e da língua deles e
que são raras em outros grupos,
como a ausência de números.
FOLHA - No ano passado, um general disse que a política indigenista
do Brasil é caótica. Diz-se também
que é muita terra para pouco índio.
O sr. concorda?
EVERETT - Os pirahãs, que são
300 pessoas, junto com os parintintins, que são menos de
cem pessoas, têm 330 mil hectares. Eles usam toda essa terra. E para os pirahãs ela deveria
ter o dobro do tamanho. Os índios, tanto no Brasil quanto nos
EUA, foram conquistados por
culturas europeias, e essas culturas devem reconhecer o dever de deixar os índios em suas
áreas tradicionais vivendo sem
interferência, se quiserem.
FOLHA - Nos EUA essa discussão está encerrada, não? Os índios têm
terras grandes e o governo dos EUA
não acha que elas sejam uma ameaça à soberania nacional.
EVERETT - É, mas o governo dos
EUA tirou os índios dos melhores lugares há mais de cem
anos. Os cherokees tinham terras lindas no Kentucky e no
Tennessee e foram removidos
para Oklahoma, que não tem
nada! Agora, que eles descobriram como ganhar a vida com
cassinos, as pessoas questionam seu direito de controlarem
as reservas, porque fazem concorrência com Las Vegas.
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