São Paulo, segunda-feira, 01 de março de 2004

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BIODIVERSIDADE

Dermasepsina, substância extraída da pele de anfíbio recém-descoberto,consegue matar parasita da doença

Pele de perereca pode combater Chagas

Divulgação
Perereca da espécie Phyllomedusa oreades, com 3 cm, encontrada em regiões altas do cerrado


REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Uma nova e pequenina espécie de perereca, descoberta nas chapadas do Planalto Central, pode se tornar uma arma insuspeita contra o microrganismo causador do mal de Chagas. Na delicada pele do anfíbio, pesquisadores de Brasília encontraram uma substância que mata o parasita Trypanosoma cruzi sem danificar células humanas.
Isso certamente não significa que as pessoas devam sair por aí esfolando a pobre Phyllomedusa oreades, apressa-se a dizer o biólogo Reuber Brandão, 31, do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). "O que temos de fazer é estudar a molécula e sintetizá-la", afirma o pesquisador, que descreveu pela primeira vez a perereca no ano passado, num artigo da revista especializada "Journal of Herpetology" (www.ssarherps.org).

"Coisa nova"
Brandão conta que estava participando de estudos de impacto ambiental para a construção de uma hidrelétrica na região quando topou com o bichinho pela primeira vez. "Vi que era mesmo um bicho diferente e pensei: "Isso é coisa nova" ", afirma. Para tirar a prova, o pesquisador percorreu as coleções de anfíbios de museus e acabou definindo, apenas com a análise morfológica, que se tratava mesmo de uma nova espécie do gênero Phyllomedusa.
Um dos principais traços distintivos da nova perereca já aparece no seu nome de espécie: oreades, ou "montanhesa" em grego latinizado. O anfíbio só habita altitudes superiores a 900 m (os chamados campos rupestres do cerrado), prefere riachos de água cristalina (suas parentas vivem geralmente em poças), mede cerca de 3 cm e tem uma glândula na cabeça bem mais desenvolvida que a média.
Ao que tudo indica, o bicho só existe em Goiás e no Distrito Federal, e não é lá muito abundante. "Ainda não dá para avaliar se ela corre riscos, mas pelo menos algumas populações estão em áreas protegidas, como no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros", afirma Brandão.
Os anfíbios, como se sabe há muito, costumam guardar na pele um verdadeiro arsenal de substâncias biologicamente ativas, muitas delas úteis contra micróbios. Isso faz todo o sentido, já que a epiderme desses bichos é quase um segundo pulmão e os ajuda a respirar, estando, portanto, bem mais aberta à influência de agentes daninhos do que a de seres humanos.
Brandão considerou que seria interessante ver que moléculas apareciam na cútis da P. oreades, e por isso uniu forças com Carlos Bloch e seus colegas da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília. Analisando as substâncias da pele da perereca, a equipe flagrou uma cuja conformação atômica parecia ideal para atacar protozoários -o grupo de microrganismos à qual pertence o famigerado T. cruzi, o vilão da doença de Chagas.
A tal substância, apelidada de dermasepsina, saiu melhor do que a encomenda. Por razões que a equipe ainda precisa esclarecer, colocá-la em meio a sangue humano infectado pelo T. cruzi se revelou mortal para o parasita, mas inócuo para as células sangüíneas. "Ainda precisamos de muito mais testes, mas já seria possível usar essa substância em bancos de sangue com suspeita de contaminação por Chagas, por exemplo", avalia Brandão.

Biodiversidade a perigo
Para o pesquisador, achados como esse mostram que está na hora de proteger e pesquisar com mais afinco a biodiversidade do cerrado, um ecossistema cuja fauna de anfíbios ainda é pouco conhecida, mas que está sob ameaça constante de degradação ambiental. "Muitas coisas estão sendo perdidas nesse processo", avalia.
Uma coisa é certa: o potencial econômico e científico dos anfíbios anda despertando a cobiça de muita gente. Prova disso é o infame caso da P. bicolor, parenta da perereca descoberta por Brandão, cujas substâncias já foram até patenteadas -fora do Brasil, conta o pesquisador.
Moléculas da pele do bicho, usada tradicionalmente por povos da Amazônia como estimulante do sistema nervoso central, foram patenteadas pela Universidade do Kentucky, nos Estados Unidos, e pelo laboratório Zymogenetics. Por isso, é importante entender os recursos da biodiversidade brasileira antes que eles deixem de pertencer ao país, diz Brandão.



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