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Floresta ideológica
Para historiador do ambiente, significados antiquados sobre a Amazônia
estão entranhados na opinião pública brasileira
ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
A Amazônia brasileira vive uma crise de identidade, pois é
hoje uma região com significados
conflitantes: última fronteira
agrícola, área de risco para a
soberania nacional, tesouro
biológico, plataforma das novas ciências. Para o especialista
em história ambiental José Augusto Pádua, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o melhor futuro do Brasil e do mundo depende da
substituição dos velhos significados pelos novos.
Esses significados têm implicações no debate político -por
exemplo, quando congressistas
propõem alterar a reserva legal
(percentual mínimo de floresta
a ser preservado em propriedades rurais) na região, de 80%
para 50%.
A "revolução científica" na
floresta, defendida pela Academia Brasileira de Ciências em
seu manifesto "Amazônia - Desafio Brasileiro do Século 21",
que tem conseqüências no orçamento para pesquisa e educação, se baseia em novos entendimentos sobre o que significa a região. E, na floresta
amazônica, o conflito retórico
ganha contrapartida material
envolvendo índios, caubóis, estrangeiros e armas.
Para o autor de "Um Sopro
de Destruição" (ed. Jorge Zahar) o clima de faroeste na região mostra não só a baixa
atuação do Estado como a necessidade de pensar a Amazônia de uma maneira atualizada.
Pádua também aponta como
engano a posição daqueles que,
ao invés de louvarem o estabelecimento de reservas indígenas como garantia de preservação ambiental, fomentam teorias conspiratórias relacionadas à soberania nacional. "O
vale-tudo e a ilegalidade predatória são as grandes ameaças à
segurança da região, não as reservas indígenas."
FOLHA - O poder público está ausente da Amazônia brasileira?
JOSÉ AUGUSTO PÁDUA - Isso é consensual. É fundamental a imposição do Estado de Direito e,
mais ainda, de um novo modelo
de ocupação, não a repetição de
modelos tradicionais da história brasileira.
A grande questão de fundo
sobre a Amazônia é um conflito
de significado: o que significa
essa região no Brasil e no contexto planetário?
Não há dúvida de que a consolidação de um território tão
grande e unificado, desde o período colonial, é uma realização
histórica impressionante.
Mas a Amazônia aparece
com muita força, quando se
pensa o futuro da Terra, por
quatro razões que não estavam
colocadas tradicionalmente.
Em primeiro lugar, há a biodiversidade -tanto em termos
científicos quanto econômicos,
com a biotecnologia.
Depois, a água doce -questão mais imediata e urgente,
pois já se desenha escassez de
água, com potenciais conflitos
por acesso a ela.
Também o clima -tanto o
que a Amazônia representa em
termos de armazenamento de
Canadá e Rússia têm controle muito maior sobre suas massas florestais do que o Brasil
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carbono quanto sua influência
sobre o sistema de chuvas. Mais
de 60% do vapor de água para
as chuvas do Brasil vem da floresta, portanto a Amazônia é
fundamental para a agricultura
do Brasil como um todo.
E a biomassa, uma das alternativas mais concretas para um
mundo pós-petróleo.
Tradicionalmente, a Amazônia seria uma última fronteira,
conquistada passo a passo,
principalmente por pecuária e
agricultura. Muitos dos atores
sociais que estão presentes no
caldeirão social da Amazônia
continuam tendo esse significado na cabeça.
FOLHA - Quem são?
PÁDUA - Mais do que tudo os
pecuaristas. Houve uma explosão do gado bovino na Amazônia. De 37 milhões de cabeças
em 1996 para 76 milhões em
2006, crescimento muito
maior do que a média nacional
[que esteve próxima de 30%].
Muitos atores -pecuaristas,
fazendeiros e políticos ligados a
esses setores- têm uma visão
muito antiga. É necessário que
haja uma revisão do que significa a Amazônia planetariamente, o tesouro que as vicissitudes
da história colocaram em nossas mãos.
FOLHA - Com a palavra "planetariamente", o sr. quer dizer que a
Amazônia não é só do Brasil?
PÁDUA - Não vejo garantia de
ganho ambiental com a internacionalização da Amazônia. A
performance ambiental de países poderosos no atual cenário
não é positiva, e a ONU não tem
tido a capacidade de evitar, por
exemplo, a falta de responsabilidade dos EUA ao não assinarem o protocolo de Kyoto.
Não existe um questionamento sério da soberania do
Brasil ou dos outros países da
região a respeito da Amazônia.
Há eventualmente declarações
levianas. Há paranóia e muita
ideologia.
FOLHA - Que ideologia?
PÁDUA - Há uma confluência
de interesses muito locais, como aqueles dos arrozeiros, por
exemplo, e de visões paranóicas (mesmo que às vezes sinceramente patrióticas).
Aqueles não teriam tanta relevância se não fosse pelo cultivo dessa visão da internacionalização, especialmente pelos
meios militares.
Não descarto a possibilidade
de uma ameaça desse tipo
acontecer no futuro distante,
em um contexto de grande deterioração e ruptura da ordem
internacional. Alguns analistas
pensam que as conseqüências
do aquecimento global poderiam ser um fator importante
na manifestação desse cenário
altamente negativo. A preocupação com a defesa do território e do tesouro que é a Amazônia é razão para o fortalecimento das Forças Armadas -a região precisa de mais Estado,
não menos.
Mas é lamentável a obsessão
de muitos setores das Forças
Armadas por terras indígenas,
como se essas fossem a grande
ameaça à soberania. Há problemas maiores, como o narcotráfico, o contrabando, guerrilhas
dos países vizinhos, prostituição infantil, desrespeito à legislação ambiental.
FOLHA - Estamos vivendo o nosso
faroeste, como ocorreu na expansão
dos EUA?
PÁDUA - É importante esse paralelo: o processo de imposição
do Estado de Direito no Velho
Oeste americano teve atuação
forte e determinada do Estado.
Por exemplo: o desarmamento
do Velho Oeste não aconteceu
por obra do acaso. Foi um processo político de imposição do
Estado de Direito numa região
de fronteira onde a violência
era privada e descontrolada.
FOLHA - É possível o desenvolvimento dessa região sem agressão
ambiental?
PÁDUA - É possível buscarmos
ao máximo os modelos alternativos, dentro de uma ordem nacional que garanta a soberania.
O "pulo do gato" é a mudança
de mentalidade. Concordo com
o documento da Academia Brasileira de Ciências, segundo o
qual é preciso um investimento
enorme em ciência e tecnologia, que faça jus à dimensão
ecológica da região.
Mas o caminho não vai ser
atingido reproduzindo modelos do passado. Hoje, para cada
ser humano na Amazônia, já há
3,5 cabeças de gado.
FOLHA - Que tendências precisam
retroceder na Amazônia? Algumas
comunidades indígenas têm grandes rebanhos [na casa das dezenas
de milhares de cabeças], não?
PÁDUA - Há pecuária nas áreas
indígenas. Mas não chega aos
pés do que há fora delas.
Há o que não pode retroceder: retroceder de 80% para
50% da propriedade a terra que
deve ser reserva legal seria uma
catástrofe. Essa legislação sinaliza o futuro, "só 20% podem
ser utilizados com os velhos
métodos". Novos métodos não
ficam imobilizados.
A pecuária precisa retroceder. É mais apropriada para
biomas mais abertos, como
caatinga, cerrado e pampa.
A Amazônia precisa crescer
com o rumo da economia do
conhecimento, dar o salto para
o futuro, não replicar o que se
fez na Mata Atlântica.
Não é idiossincrasia de Lula
fazer demarcação contínua:
vem da Constituição de 1988.
Essa política tinha diferentes
objetivos. Um tem a ver com os
direitos dos índios. Apesar das
dificuldades, o aumento da população indígena é um indicador de que a demarcação das
terras vem tendo resultados.
Mas há uma outra agenda: é
uma política de reorganização
de fronteira e de reapropriação
pelo poder público das terras
da Amazônia, onde ocorreu durante o regime militar um processo descontrolado de privatização de terras.
Os maiores países florestais
do planeta, como o Canadá e a
Rússia, têm controle muito
maior sobre suas massas florestais do que o Brasil. O Estado
cede o uso em regime de concessão. No Brasil houve uma
privatização muito grande.
Praticamente 36% da Amazônia é de terras privadas. Delas, só 4% têm títulos de propriedade com registro válido.
Há uma anarquia, uma quantidade enorme de grilagem.
FOLHA - Trata-se de uma "privatização gratuita"?
PÁDUA - Gratuita e ilegal.
Quando se determina que
cerca de 20% das terras da
Amazônia serão terras indígenas, existe essa agenda implícita, que muitas vezes não fica
clara para a opinião pública.
É a criação de reservas ecológicas, de áreas onde o Estado
tem maior presença.
A demarcação passou por todos os rituais que a lei prevê, de
forma que isso deveria ser considerado um ponto muito positivo do Brasil no debate ambiental internacional.
Cerca de 14% da Amazônia já
está demarcada como reserva
indígena, o que representa uma
conquista bastante rápida -da
Constituinte para cá. Acho curioso que a diplomacia brasileira, ao invés de usar isso como
um "ativo", adote uma postura
quase defensiva sobre o assunto. A sociedade brasileira deveria ver essas reservas também
como ambientais.
Hoje há várias propriedades
com mais de 1 milhão de hectares. Se um proprietário faz um
acordo com o narcotráfico, é
muito mais difícil o Estado
controlar essas terras do que as
indígenas, onde o Exército entra sem pedir licença, pois, por
definição, são terras do Estado.
Não vejo garantia de ganho ambiental com a internacionalização da Amazônia em fazenda de Mato Grosso
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FOLHA - Como o sr. analisa o conflito, no governo, entre as demarcações e o desenvolvimentismo?
PÁDUA - Esse conflito é em
grande parte ideológico, produzido na confluência de interesses nacionais, de desenvolvimento ou soberania, e interesses locais, pequenos, de atores
que querem lucrar -os políticos locais usam isso como argumento eleitoral.
Vejamos um exemplo forte:
protesta-se que Roraima vai ter
43% de seu território em reservas. Em primeiro lugar, é preciso perceber o estatuto especial
desses novos Estados [Roraima
e Amapá], criados pela Constituição de 1988.
Alguns analistas consideram
que foi precipitada a transformação desses territórios em
Estados. Foi decisão legítima,
não há o que contestar.
Mas há uma situação socioeconômica especial, com o Orçamento praticamente todo de
recursos federais.
Mesmo assim, os 57% restantes são um território muito
grande -há nove Estados brasileiros menores do que essa
área. Não há como dizer que as
reservas irão impedir o desenvolvimento do Estado.
FOLHA - Como vê os debates relacionados, por exemplo, à instalação
de usinas elétricas?
PÁDUA - Esses debates são positivos para o desenvolvimento
sustentável do país. A discussão
democrática sobre determinada obra pública -por exemplo,
uma represa com conseqüências ambientais e sociais grandes- não é um entrave, mas,
sim, um aperfeiçoamento do
processo como um todo.
[O historiador, 1886-1964]
Karl Polanyi colocou muito
bem: quando se tem um conflito entre dois setores, o resultado histórico não é uma vitória
absoluta de um lado; ele é, na verdade, moldado pela dinâmica do conflito.
As represas serão construídas em condições tecnológicas
muito melhores, de forma mais
inteligente do ponto de vista
ambiental.
Os setores que se opõem a
obras não são derrotados, pois
muitas de suas demandas serão
incorporadas, e a própria concepção dos projetos futuros
passará a incorporar preocupações ambientais que antes não
existiam.
Se tivesse havido debate no
passado, não teria sido construída a represa de Balbina
[AM] como foi -um desastre
ambiental e econômico.
FOLHA - Marina Silva deixou o cargo de ministra do Meio Ambiente
num bom momento?
PÁDUA - Não do ponto de vista
do governo. Ela renunciou num
momento confuso, com a primeira-ministra alemã [Angela
Merkel] no Brasil, o que deu
maior visibilidade mundial ao
acontecimento.
Mas foi bom o momento como atitude política, colocou a
questão de volta ao centro das
discussões, pôs o governo numa situação difícil de retroceder em política ambiental. Se
fosse uma saída mais comportada, talvez não fosse escolhido
como substituto alguém tão
comprometido com a ecologia
quanto Carlos Minc.
FOLHA - O Protocolo de Kyoto tem
validade hoje?
PÁDUA - No contexto da comunidade internacional, o fato de
ele existir já é um grande avanço, inclusive por reconhecer
que houve graus diferenciados
de impacto de cada país -uma
inovação.
É um divisor de águas, mas
está ficando ultrapassado, pois
precisamos de mais ousadia em
relação a questões como o
aquecimento global.
Mas sou otimista. Em 1992
[quando houve a cúpula ambiental no RJ], havia preocupação global; desde então, houve
retrocesso. Mas agora [a questão] está de volta aos jornais.
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