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São Paulo, terça-feira, 01 de julho de 2003

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BIOLOGIA

Estudo de americanos e brasileira mostra que o órgão funciona para regular os ritmos do organismo até em cegos

Olho tem dupla função, conclui pesquisa

SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Se a beleza está nos olhos de quem vê, a regulação do relógio biológico é mais democrática: está nos olhos até de quem é cego. Um novo estudo acaba de mostrar que o órgão da visão tem outra função além de enxergar, e que opera até quando o indivíduo não vê um palmo à frente do nariz.
Nos últimos anos, tem se cristalizado a noção de que a captação de luz pelo olho, além de permitir a visão, de fato ajuda a regular o chamado relógio circadiano, o ritmo em que o organismo trabalha, em sintonia com o dia e a noite. A novidade é que agora está provado que as duas funções podem ocorrer independentemente.
O avanço veio de um grupo de pesquisadores dos EUA e do Brasil. Para conduzir os estudos, eles usaram o melhor amigo do homem, quando o assunto é pesquisa científica: o camundongo. Manipulando geneticamente os animais, produziram três versões diferentes. Alguns tiveram desativado um gene para a produção de uma substância chamada melanopsina. Outros ganharam um gene que causava cegueira. Um terceiro grupo recebeu os dois defeitos genéticos ao mesmo tempo.
A melanopsina é uma substância que foi anteriormente associada a reações que influem no relógio biológico. Mas restava saber se ela só funcionava direito quando o sistema visual estivesse em operação ou se sua ação tinha vida independente. Agora ficou demonstrado que ela pode atuar sozinha. Os camundongos com melanopsina, mas cegos, mantiveram seu relógio biológico razoavelmente regulado e o olho continuou reagindo à luminosidade, mesmo sem função visual.
Em compensação, os cegos sem melanopsina não tiveram o mesmo desempenho. "É como se eles estivessem o tempo todo no escuro", diz Ana Maria Castrucci, pesquisadora do Instituto de Biociências da USP que participou do estudo, publicado on-line pela revista norte-americana "Science" (www.sciencexpress.org).

Pilha fraca
Por décadas os pesquisadores se debateram a respeito da existência de um relógio biológico interno nos mamíferos. De uns anos para cá, a informação se tornou mais concreta. E a verdade é que o chamado relógio circadiano até funciona sem dicas de luminosidade -mas com a pilha fraca.
"É como se ele estivesse sempre atrasado. Aí é que entra a luz, para ajudar a fazer essa regulação mais exata", afirma Castrucci. No caso dos camundongos com cegueira e sem melanopsina, por exemplo, o relógio interno marcava um dia com 24 horas e alguns minutos.
Embora a regulação por fotossensibilidade ocorra mesmo nos animais cegos, a pesquisadora diz que o resultado é ainda melhor nos que têm o sistema visual intacto. "As duas vias acabam se complementando."
De toda maneira, o estudo ajuda a eliminar a noção de que a visão é a única função do olho. E só a cegueira não justifica mais a extração do órgão e a substituição por uma prótese, segundo a pesquisadora. "Se o olho estiver vivo, se estiver irrigado com sangue, mas estiver sem a visão, a pessoa não deve retirá-lo", afirma.
O relógio circadiano tem se provado um elemento importante da saúde humana. De acordo com Castrucci, há até um grupo de pesquisadores que agora estuda a síndrome afetiva sazonal (uma espécie de depressão que ocorre no inverno, época em que o período diário de luminosidade é menor) e sua potencial relação com mutações no gene responsável pelas instruções de fabricação da melanopsina. "Hoje em dia, os pacientes dessa síndrome são tratados com luz. Alguns respondem bem e se recuperam, outros não. Os cientistas especulam que pode ter algo a ver com mutação na melanopsina", diz a brasileira.

Longa estrada à frente
Apesar dos avanços no entendimento dos mecanismos do relógio circadiano em particular e das reações à luz no âmbito celular em geral, ainda há muito espaço para especulação e controvérsia. Em 1998, por exemplo, pesquisadores americanos sugeriram que luz lançada sob o joelho poderia causar alterações no ritmo do organismo. As conclusões acabaram refutadas em 2002 por outro grupo de cientistas, mas ainda há espaço para estudos a respeito.
"Em outras espécies, sabemos que essas reações não estão restritas ao olho", diz Castrucci. "Em humanos, se há alguma coisa fora do olho, ainda não sabemos."


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