São Paulo, domingo, 01 de setembro de 2002

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ARTIGO

Nossos filhos nos agradecerão


As metas estabelecidas no Rio, há dez anos, não perderam nada da sua urgência


Países industrializados têm de abrir seus mercados aos países em desenvolvimento


Fazem parte da qualidade de vida também trabalho satisfatório, saúde e moradia adequada


Muitas pessoas se interrogam se não estamos desperdiçando tempo em Johannesburgo

GERHARD SCHRÖDER

Os participantes da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio +10) em Johannesburgo têm uma responsabilidade enorme: assegurar o futuro do nosso planeta.
As inundações devastadoras na Europa não são apenas forças da natureza terríveis que extinguiram, da noite para o dia, vidas humanas, existências materiais e a obra de reconstrução de cidades inteiras. São também indicações, ou melhor, sinais de alarme gritantes da natureza para os homens que habitam o planeta e que têm de mantê-lo habitável.
Em vez de nos perdermos na disputa entre peritos sobre a verdadeira dimensão da contribuição dos próprios homens para essas calamidades -por meio do aquecimento do clima, da retificação do curso dos rios ou da interdição da natureza-, convém darmo-nos conta de que não temos outro planeta, a não ser este.
A nossa sobrevivência, e também a dos nossos filhos e netos, dependerá do grau de proteção que dispensarmos aos nossos recursos finitos, da nossa capacidade de assegurar e distribuir equitativamente os meios de vida para todos os homens e também as riquezas e as oportunidades de desenvolvimento no globo -da maneira como preservamos a viabilidade e a habitabilidade do nosso ambiente comum. Resumindo: nossa sobrevivência dependerá da maneira como conseguirmos harmonizar o direito ao desenvolvimento e à prosperidade com o nosso dever de superar a fome e de preservar a terra para nós e para nossos filhos.
Esses pensamentos já estavam no centro das negociações da cúpula do Rio, há dez anos. Naquele tempo, os Estados participantes tinham acordado objetivos ambiciosos: a visão de um mundo além das guerras e dos conflitos, da pobreza e da destruição da natureza, parecia mais próxima, após o fim da Guerra Fria e do antagonismo entre os blocos.
Dez anos depois, na Rio +10, trata-se de muito mais do que fazer um balanço e rever juntos quantos progressos fizemos no caminho então acordado e enveredado. Não há dúvida: será necessário agir. As metas estabelecidas no Rio não perderam nada da sua urgência.
Acrescentaram-se, porém, ainda outros desafios; dos riscos conhecidos, resultaram perigos agudos. A segurança individual e coletiva passou a ser um bem precioso -ameaçado por conflitos regionais, crimes, terrorismo, epidemias e riscos ambientais globais. O que alcançamos por um lado -por exemplo, a despoluição do rio Elba em toda a Europa- foi levado pela força das águas dentro de poucos dias.
Progressos impressionantes alcançados no campo da proteção ambiental nos países industrializados, mas também no âmbito do desenvolvimento de algumas economias nacionais nos assim chamados "países emergentes", se defrontam, por outro lado, com reveses desalentadores. As alterações climáticas globais transformaram-se em realidade palpável para muitas pessoas. A pobreza mundial se alastrou ainda mais -mais de 2 bilhões de pessoas, quase a metade da humanidade, vivem com menos de dois euros por dia; 1,5 bilhão de homens, mulheres e crianças jamais tomarão um copo de água limpa.
O choque dos atentados do 11 de setembro de 2001 fez com que os governos e as sociedades no mundo inteiro se aproximassem mais, para fazer face à ameaça do terrorismo. Ao mesmo tempo, porém, ficou bem claro: a paz e a segurança não podem ser alcançadas e preservadas apenas com meios militares e policiais.
Embora não haja uma relação direta entre economia globalizada e terrorismo internacional, a verdade é que sem uma agenda para a justiça global não haverá segurança global. Precisamos definir um novo conceito de segurança que abranja aspectos econômicos, ecológicos e sociais. Trabalhamos para isso e precisamos, em Johannesburgo, acertar os ponteiros também nesse sentido.
É evidente: a globalização se tornou a característica determinante da nossa economia mundial. Mas ela não é uma força da natureza que não possamos influenciar, e sim uma rede de relações econômicas, comerciais e de comunicação que precisamos tecer com meios políticos.
Significa que temos de elaborar regras e normas de comportamento que contribuam para que o maior número possível de pessoas possa participar nas vantagens indiscutíveis da globalização e para que sejam entravados desenvolvimentos prejudiciais para nós e para as gerações vindouras. Os mercados por si sós não podem conseguir isso.
Sabemos, por exemplo, que nos países que se abriram completamente ao comércio mundial a prosperidade da população vai crescendo, em vez de diminuir. Quem combate indiscriminadamente a abertura dos mercados internacionais não ajuda de maneira alguma os países em desenvolvimento, mas lhes veda o acesso ao caminho de saída da pobreza. "Trade is aid" é uma das máximas comprovadamente corretas da política de desenvolvimento: ajuda pelo comércio -pelo comércio justo, bem-entendido.
Essa percepção confere aos países ricos do mundo desenvolvido, ao mesmo tempo, uma responsabilidade especial. Os países industrializados têm de abrir efetivamente os seus mercados aos produtos provenientes dos países em desenvolvimento -mesmo que isso seja, a curto prazo, desfavorável para os seus próprios privilégios, tais como os subsídios agrícolas nos EUA e na Europa. A longo prazo, todos nós poderemos nos beneficiar de mercados verdadeiramente abertos.
Acabar com o abismo entre pobres e ricos, ou, pelo menos, reduzi-lo consideravelmente, está também no interesse genuíno de um país como a Alemanha, que vive mais que outros da exportação dos seus bens e serviços. Queremos ampliar e fomentar o comércio e o intercâmbio com países menos desenvolvidos do planeta. Tarifas protetoras e outras barreiras comerciais não condizem com a nossa época.
Por outro lado, estratégias nacionais, por exemplo para reduzir os gases de efeito estufa, só têm utilidade limitada. Sendo poucos os países a cumprir as metas acordadas em conjunto, e havendo, por outro lado, um aumento constante das emissões de dióxido de carbono, o resultado permanece dramático: o aquecimento global não pára diante das fronteiras nacionais.
Mesmo assim, a Alemanha continuará, também no futuro, na vanguarda da proteção do clima. Solicitamos com ênfase aos outros Estados-membros das Nações Unidas que façam tudo para ratificar o Protocolo de Kyoto, o mais rapidamente possível, e para cumprir as metas nele acordadas.
Dirijo um apelo sobretudo aos Estados Unidos para que assumam a sua responsabilidade na proteção do clima e prestem uma contribuição equivalente à redução dos gases de efeito estufa. Continua a ser nossa intenção conseguir que os EUA, num segundo passo, voltem a participar plenamente nos acordos internacionais sobre proteção do clima.
Trata-se, antes de mais nada, do aumento contínuo da eficiência energética. Nessa área, a Alemanha já está hoje no topo do ranking dos países industrializados.
Melhorar o grau de eficiência das centrais elétricas, evitar a geração de resíduos, ter automóveis pouco poluentes nas nossas estradas e aparelhos que consumam bem menos energia do que os usados nos tempos dos nossos pais são investimentos no futuro dos nossos filhos. Não só porque abandonamos energias obsoletas, como a atômica, cujos riscos constituem um ônus irresponsável para muitas gerações, mas também porque desenvolvemos, no seu lugar, novas fontes energéticas renováveis, que não só economizam despesas em medida considerável, mas também desencadeiam um novo surto de inovações industriais. Já é previsível que novas tecnologias energéticas possam desencadear, nos países industrializados, um verdadeiro "milagre dos empregos".
Estou convencido de que a eficiência energética e de recursos será futuramente a marca registrada de economias de mercado bem-sucedidas a longo prazo. Assim, servimos ao mesmo tempo de exemplo para países com economias menos desenvolvidas: com uma política energética sustentável, será possível compatibilizar a defesa dos recursos naturais e o desenvolvimento econômico bem-sucedido.
Sabemos que os países em desenvolvimento não conseguirão, por si sós, implementar uma concepção energética tão ambiciosa. Por isso apoiamos com outros países europeus o reforço do mecanismo central para a proteção do ambiente em nível mundial.
Alocando adicionalmente 2,7 bilhões de dólares, os Estados europeus pretendem garantir que os países em desenvolvimento recebam os recursos necessários para a implantação de um abastecimento energético sustentável.
Além disso, apresentarei em Johannesburgo três propostas concretas sobre como podemos fazer progredir em escala mundial o uso de energias renováveis.
Primeiro, a Alemanha será anfitriã (a exemplo da bem-sucedida Conferência sobre a Água em Bonn) de uma conferência internacional sobre energias renováveis. Seu objetivo consiste no desenvolvimento duma estratégia internacional para a extensão dessas modalidades energéticas.
Segundo, proporei que seja dado a um organismo da ONU um mandato bem definido para apoiar sobretudo os países em desenvolvimento na implantação de um sistema energético que preserve o clima e os recursos. Nesse âmbito, as energias renováveis deverão constituir prioridade.
Terceiro, a Alemanha concluirá parcerias estratégicas com países em desenvolvimento e emergentes, acordando nesse âmbito metas adaptadas às realidades existentes no respectivo país parceiro, metas a serem alcançadas em conjunto. Trata-se, paralelamente à extensão das energias renováveis, da modernização das centrais elétricas existentes e da identificação dos potenciais de redução do consumo de energia.
Essas propostas se inserem perfeitamente na nossa estratégia nacional de sustentabilidade, que igualmente apresentarei em Johannesburgo -não como modelo a ser necessariamente imitado, mas como trilha de crescimento viável, que poderá oferecer orientação a outros. A nossa estratégia se orienta por quatro diretrizes:
Justiça entre gerações - Pretendemos construir nossas economias de forma tal que os interesses legítimos de nossos filhos, netos e bisnetos estejam em harmonia com as necessidades das gerações presentes. Por isso as dívidas públicas são reduzidas, para assegurar às gerações vindouras o seu espaço político de manobra. Ao mesmo tempo, queremos tomar providências, através do manejo cuidadoso dos recursos naturais, para que as bases naturais da nossa vida fiquem preservadas.
Qualidade de vida - Tal meta ultrapassa em muito a mera tarefa de preservar intactas a natureza e a paisagem. Fazem parte da qualidade de vida também trabalho satisfatório, saúde e moradia adequada, além de segurança pessoal e social. Um ambiente habitável consiste também na melhor formação possível, em cidades com qualidade de vida e seguras, com múltiplas ofertas culturais, e na promoção do indivíduo e de seus mais diversos talentos, capacitando-o a levar uma vida autodeterminada na sua família e no seu contexto de vizinhança. Por isso defendemos o princípio de um Estado ativo e também ativador.
Coesão da sociedade - As rápidas mudanças estruturais na economia, com suas consequências para os ambientes de trabalho e a adaptação indispensável a condições de vida alteradas, representam para muitas pessoas um tipo de "matéria-prima do temor". Reformas sociais que exijam e fomentem a participação do cidadão na vida comunitária impedem a divisão da população em vencedores e vencidos.
Responsabilidade internacional - O nosso desenvolvimento futuro está inserido no contexto europeu e internacional. Sabemos que não há nação no mundo que possa sozinha garantir a prosperidade e a segurança dos seus cidadãos. Tampouco será possível preservar isoladamente as bases naturais da nossa vida.
A União Européia assumiu, nos últimos dez anos desde a conferência do Rio, um papel exemplar no que se refere à mediação entre os interesses dos países industrializados e dos em desenvolvimento. Continuaremos a apoiar as Nações Unidas na implementação das suas metas, assim como o fizemos no passado, apoiando energicamente os seus programas. Saúdo expressamente o fato de que o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional tenham compreendido os sinais dos novos tempos, vinculando as suas ajudas menos a idéias dogmáticas de liberalização de mercados e mais às metas de desenvolvimento sustentável.
Admitimos que, em face dos consideráveis esforços materiais e técnicos necessários para a realização de uma cúpula, muitas pessoas se interrogam se, em Johannesburgo, não estamos desperdiçando tempo, energia e material em nome da defesa dos recursos naturais. Respondo que assim seria se não aproveitássemos as oportunidades que se nos oferecem para construir em conjunto processos de aprendizagem e para alcançar progressos eficazes e visíveis. Mas a tarefa que temos é outra. A humanidade dispõe hoje do conhecimento, das riquezas, das potencialidades técnicas e também do sentido de responsabilidade comum para resolver os problemas do nosso planeta.
Temos de assumir essa responsabilidade -os nossos filhos nos agradecerão.

Gerhard Schröder é chanceler (primeiro-ministro) da Alemanha


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