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FRANCIS FUKUYAMA
Pensador do "fim da história" agora diz que as biotecnologias arriscam destruir as bases da política
"Biologia permitirá controlar o comportamento humano"
MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA
Francis Fukuyama e Jürgen Habermas, quem diria, acabaram se
encontrando no campo da bioética. O filósofo social americano e o
alemão, apesar de provenientes
de escolas díspares de pensamento, despertaram juntos para as
implicações da engenharia genética e celular. No caso de Fukuyama, essa reflexão levou ao livro
"Nosso Futuro Pós-Humano", de
2002, que está sendo lançado agora no Brasil pela Editora Rocco
(272 págs., R$ 35,00).
Para o autor do polêmico "O
Fim da História", Aldous Huxley
acertou, e George Orwell errou.
Quer dizer, a distopia marcada
pela manipulação de embriões,
no romance "Admirável Mundo
Novo" parece mais premonitória
do que a da "teletela" do Grande
Irmão, no livro "1984".
"Comecei a perceber que vários
desenvolvimentos na biologia tinham muito mais consequências
no longo prazo, ou viriam a ter,
do que a revolução na tecnologia
da informação", diz Fukuyama.
Voz grave e dicção de professor,
ele discorreu por meia hora sobre
as teses do livro. Disparou para
todos os lados e alvejou algumas
das vacas sagradas da biomedicina, como as drogas comportamentais do tipo do Prozac (antidepressivo) e do Ritalin (contra
hiperatividade), que na sua opinião criam a ilusão de soluções fáceis e com isso subvertem alguns
pressupostos das relações interpessoais. No limite, defende o filósofo, isso ameaça a sobrevivência
da própria democracia.
Sobraram críticas também para
a "indústria" da bioética, que serviria mais para impedir controle
social sobre a pesquisa do que para questioná-la. O próprio Fukuyama faz parte do Conselho de
Bioética (www.bioethics.gov)
criado pelo presidente dos EUA,
George W. Bush, para o qual foi
convidado pelo bioeticista conservador Leon Kass.
Entre cientistas da área biomédica, a atual administração Bush é
vista como das mais retrógradas,
tendo para todos os efeitos proibido a investigação com as promissoras células-tronco embrionárias -depois de ouvir Kass e os
colegas de Fukuyama.
A defesa de restrições à biotecnologia, contudo, não é privilégio
de conservadores, nem de ambientalistas e luditas alérgicos à
tecnologia. Nenhuma dessas qualificações cabe decerto para Habermas, mas o pensador alemão
pede o mesmo -regulamentação- em seu livro "Die Zukunft
der menschlichen Natur" (O Futuro da Natureza Humana), lançado em 2001 (uma edição inglesa
saiu neste ano, pela Polity Press).
Fukuyama não leu Habermas,
mas concorda com ele.
Leia a seguir trechos da entrevista realizada na quinta-feira,
por telefone, de seu escritório na
Universidade Johns Hopkins:
Esse tipo de
unilateralismo
já alcançou um
limite, muito
claramente, mas
o problema é
que os EUA não
querem admitir
que erraram
no Iraque
Folha - Nas primeiras páginas de
"Nosso Futuro Pós-Humano" o sr.
diz que a objeção mais poderosa
contra a idéia de que a história chegou ao fim era que a pesquisa científica teria de chegar a seu termo, o que não seria concebível. Ou seria?
Francis Fukuyama - Não acho
que seja concebível. Penso que há
uma questão importante sobre o
tipo de instituições políticas e sobre a natureza das relações sociais
muito dependentes da tecnologia,
que define a natureza da economia e toda sorte de coisas sobre
nosso modo de vida, portanto um
dos grandes motores da mudança
social. Se você não tiver um fim da
tecnologia, é muito difícil ter um
fim da história.
Folha - O que precisamente o levou a refletir sobre os efeitos da
neurociência e da psicologia evolucionária sobre a filosofia política?
Fukuyama - Eu vinha mantendo
um grupo de estudos há muitos
anos, começando nos anos 90, sobre o impacto da revolução das
tecnologias de informação [IT, na
abreviação em inglês] na política
global. Foi um grupo de estudos
muito bem-sucedido, examinamos uma porção de questões relacionadas com IT, e os patrocinadores perguntaram por que não o
ampliávamos, para falar de outras
questões relativas à ciência.
Foi nesse ponto que comecei a
perceber que vários desenvolvimentos na biologia tinham muito
mais consequências no longo prazo, ou viriam a ter, do que a revolução na IT, porque dava acesso
precisamente ao controle do
comportamento humano, potencialmente, e uma certa compreensão das fontes do comportamento
humano. Como um cientista social, isso constituía um grande
problema para mim.
Uma das coisas interessantes
que se tornaram rapidamente óbvias para mim era que, de fato, havia ocorrido uma grande reviravolta na nossa compreensão do
impacto da genética. Cinquenta
anos atrás, a maioria dos cientistas naturais e sociais diria que o
comportamento humano é quase
todo socialmente construído e deve muito pouco à biologia. Essa
visão foi sacudida como resultado
de um bocado de trabalho empírico nas ciências da vida.
Folha - E como foi a sua participação no Conselho de Bioética?
Fukuyama - Todas as discussões
e apresentações foram extraordinariamente ricas. Se é que posso
dizer assim, toda a indústria da
bioética, que é uma indústria razoavelmente grande nos Estados
Unidos, foi criada deliberadamente pela comunidade de pesquisa científica para compartimentalizar e isolar potenciais objeções éticas ao tipo de trabalho
que estavam fazendo...
Folha - Engenharia genética...
Fukuyama - Sim, e muito do que
se fazia era para se defenderem da
regulamentação política aberta
das atividades, algo bem compreensível de sua parte. Mas isso
quer dizer que muito da bioética
produzida nos Estados Unidos
tende a ser muito favorável à ciência. As críticas tendem a ser muito
abafadas. Uma das grandes coisas
boas desse conselho atual é que a
participação é muito diversa.
Folha - A genômica está ainda
muito longe de ser capaz de intervir com precisão nos genes, com resultados previsíveis, menos ainda
na complexa interação de multidões de genes e eventos ambientais que parecem caracterizar os
traços comportamentais. O sr. concorda que o determinismo genético se encontra morto entre geneticistas praticantes, mas vai bem de
saúde na percepção do público?
Fukuyama - A maioria daqueles
que estão profissionalmente envolvidos entendem essa relação
complexa entre genes e ambiente,
mas isso é difícil de explicar para
várias pessoas, fazê-las entender
que não é ou uma coisa ou outra,
mas sim alguma interação complexa entre as duas.
Folha - Seu livro afirma que Aldous Huxley, e não George Orwell,
é que estava certo, no final, no sentido de que a biotecnologia está fadada a remodelar a natureza humana a ponto de torná-la irreconhecível. Mas por que essa remodelagem é necessariamente errada
e potencialmente ameaçadora?
Fukuyama - Em primeiro lugar,
eu não sei se será esse o caso. O
que disse é que, depois de 50 anos, parece que Orwell estava errado quanto
à IT [tecnologia da
informação]. Por
outro lado, teremos
de esperar para ver
se Huxley estava
certo quanto à biotecnologia.
Acredito que há
um par de razões
pelas quais a biotecnologia pode ser
problemática. A
primeira tem a ver
com a possibilidade
de que pessoas
exerçam controle
social sobre outras
pessoas, porque
uma compreensão
científica melhor
do cérebro e das fontes biológicas
do comportamento abre novas
possibilidades para a engenharia
social, o que já foi tentado em gerações passadas, sem sucesso,
com um grande custo humano.
Já se pode ver isso com essa droga, Ritalin, usada para controlar a
condição DDAH [distúrbio do
déficit de atenção com hiperatividade], que é perfeitamente legítima em muitas circunstâncias,
mas que nos Estados Unidos, particularmente, é empregada de forma extremamente ampla. Em
muitos casos fica claro que ela é
prescrita simplesmente como um
meio de controlar, pela via médica, as crianças malcomportadas,
em lugar dos meios mais tradicionais de educá-las, de despertar
seu interesse por diferentes atividades. Acredito que essa é apenas
a ponta do iceberg.
Folha - É correto dizer que o cerne
de seu argumento é que a natureza
humana não deve ser modificada?
Fukuyama - Como eu procuro
argumentar em meu livro, quando nós nos perguntamos sobre a
origem de nossas noções de direitos humanos, já que relativamente poucas pessoas em nossa sociedade diriam que eles vêm de
Deus, eles realmente estão baseados em algum entendimento do
que seja a natureza humana. Se
houver uma tecnologia suficientemente poderosa para começar a
alterar algumas dessas características essenciais, é quase inevitável
que ocorram efeitos políticos.
Folha - Mas não é obrigatório remeter a natureza humana a um
conceito biológico
de espécie, a universais do comportamento que teriam sido determinados pela evolução.
Fukuyama - No
fim das contas,
muita coisa virá daí.
Por exemplo: todo
mundo diria, acredito, que ser capaz
de falar uma língua
é uma parte central
da natureza humana, que o fato de você falar português
ou inglês não é determinado geneticamente, mas que a
capacidade de falar
uma língua e de comunicar toda a riqueza das interações sociais decorre disso [dos genes]. Acho que é algo programado dentro de nós. Daí que o produto final, que é a linguagem, é
uma interação complexa de genes, ambiente e cultura, mas os
genes ainda estão na base disso.
Folha - Quais são as chances de
que objeções meramente éticas sejam capazes de deter essas incursões sobre a natureza humana? Como o sr. mesmo reconhece no livro,
a biomedicina está realizando somente aquilo que as pessoas estão
dispostas a pagar para obter.
Fukuyama - É muito difícil dizer.
Uma das razões pelas quais é tão
difícil regulamentar esse tipo de
tecnologia é precisamente que
muita gente a deseja, e que coisas
potencialmente ruins estão misturadas com benefícios verdadeiros. Por outro lado, há muitos
precedentes de criação de limites
ao desenvolvimento tecnológico.
Fazemos isso o tempo todo no
próprio campo da biomedicina.
Folha - De volta à questão da natureza humana, eu gostaria de tornar as coisas um pouco mais concretas. Os iraquianos, por exemplo,
não concordariam decerto com a
definição ocidental de natureza
humana e com a idéia de que a democracia liberal é o sistema político que menos interfere com padrões naturais de comportamento.
Eles diriam que aquilo que está
acontecendo agora no Iraque afeta, e muito, os seus padrões de
comportamento, e que esses padrões não deveriam ser classificados como contrários à natureza.
Fukuyama - Em primeiro lugar,
eu não diria simplesmente que a
democracia liberal é natural e que
todo o resto é contrário à natureza. A questão é: existe algum tipo
de história evolutiva, uma senda
evolutiva que as sociedades humanas tendem a seguir enquanto
se modernizam?
Eu diria que isso claramente
existe e que, em certo sentido, a
força relativa da democracia diante de, digamos, um Estado islâmico é algo que só se pode testar empiricamente. Teremos de ver se
grandes contingentes de muçulmanos realmente escolherão viver nessas sociedades tradicionais, ou se vão querer enfrentar o
desafio da modernização.
Folha - O sonho de uma política
global universalista e eticamente
orientada, tal como no ideal das
Nações Unidas, parece estar em
frangalhos, depois do atentado
contra seu escritório em Bagdá, no
qual morreu Sérgio Vieira de Mello.
Há futuro para a ONU, num mundo
em que o poder militar dos EUA não
encontra oposição significativa?
Fukuyama - O que se pode ver
nos jornais de hoje [quinta-feira]
é que os Estados Unidos estão se
voltando para a ONU, de novo, e
adotando uma nova atitude, com
vistas a obter uma outra resolução
que permita maior participação
[de outros países no Iraque].
Uma das coisas que ficaram claras, acredito, é que, embora os
EUA possam fazer a intervenção
militar inicial, unilateralmente ou
de forma virtualmente unilateral,
de fato é preciso um tanto a mais
de cooperação para lidar com a
reconstrução no pós-guerra, no
Afeganistão e no Iraque.
Acho que esse tipo de unilateralismo já alcançou um limite, muito claramente. O problema [ri] é
que eles não querem admitir que
estavam errados a esse respeito.
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