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São Paulo, segunda-feira, 01 de setembro de 2003

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FRANCIS FUKUYAMA

Pensador do "fim da história" agora diz que as biotecnologias arriscam destruir as bases da política

"Biologia permitirá controlar o comportamento humano"

MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA

Francis Fukuyama e Jürgen Habermas, quem diria, acabaram se encontrando no campo da bioética. O filósofo social americano e o alemão, apesar de provenientes de escolas díspares de pensamento, despertaram juntos para as implicações da engenharia genética e celular. No caso de Fukuyama, essa reflexão levou ao livro "Nosso Futuro Pós-Humano", de 2002, que está sendo lançado agora no Brasil pela Editora Rocco (272 págs., R$ 35,00).
Para o autor do polêmico "O Fim da História", Aldous Huxley acertou, e George Orwell errou. Quer dizer, a distopia marcada pela manipulação de embriões, no romance "Admirável Mundo Novo" parece mais premonitória do que a da "teletela" do Grande Irmão, no livro "1984".
"Comecei a perceber que vários desenvolvimentos na biologia tinham muito mais consequências no longo prazo, ou viriam a ter, do que a revolução na tecnologia da informação", diz Fukuyama.
Voz grave e dicção de professor, ele discorreu por meia hora sobre as teses do livro. Disparou para todos os lados e alvejou algumas das vacas sagradas da biomedicina, como as drogas comportamentais do tipo do Prozac (antidepressivo) e do Ritalin (contra hiperatividade), que na sua opinião criam a ilusão de soluções fáceis e com isso subvertem alguns pressupostos das relações interpessoais. No limite, defende o filósofo, isso ameaça a sobrevivência da própria democracia.
Sobraram críticas também para a "indústria" da bioética, que serviria mais para impedir controle social sobre a pesquisa do que para questioná-la. O próprio Fukuyama faz parte do Conselho de Bioética (www.bioethics.gov) criado pelo presidente dos EUA, George W. Bush, para o qual foi convidado pelo bioeticista conservador Leon Kass.
Entre cientistas da área biomédica, a atual administração Bush é vista como das mais retrógradas, tendo para todos os efeitos proibido a investigação com as promissoras células-tronco embrionárias -depois de ouvir Kass e os colegas de Fukuyama.
A defesa de restrições à biotecnologia, contudo, não é privilégio de conservadores, nem de ambientalistas e luditas alérgicos à tecnologia. Nenhuma dessas qualificações cabe decerto para Habermas, mas o pensador alemão pede o mesmo -regulamentação- em seu livro "Die Zukunft der menschlichen Natur" (O Futuro da Natureza Humana), lançado em 2001 (uma edição inglesa saiu neste ano, pela Polity Press).
Fukuyama não leu Habermas, mas concorda com ele.
Leia a seguir trechos da entrevista realizada na quinta-feira, por telefone, de seu escritório na Universidade Johns Hopkins:

Esse tipo de unilateralismo já alcançou um limite, muito claramente, mas o problema é que os EUA não querem admitir que erraram no Iraque

 

Folha - Nas primeiras páginas de "Nosso Futuro Pós-Humano" o sr. diz que a objeção mais poderosa contra a idéia de que a história chegou ao fim era que a pesquisa científica teria de chegar a seu termo, o que não seria concebível. Ou seria?
Francis Fukuyama
- Não acho que seja concebível. Penso que há uma questão importante sobre o tipo de instituições políticas e sobre a natureza das relações sociais muito dependentes da tecnologia, que define a natureza da economia e toda sorte de coisas sobre nosso modo de vida, portanto um dos grandes motores da mudança social. Se você não tiver um fim da tecnologia, é muito difícil ter um fim da história.

Folha - O que precisamente o levou a refletir sobre os efeitos da neurociência e da psicologia evolucionária sobre a filosofia política?
Fukuyama
- Eu vinha mantendo um grupo de estudos há muitos anos, começando nos anos 90, sobre o impacto da revolução das tecnologias de informação [IT, na abreviação em inglês] na política global. Foi um grupo de estudos muito bem-sucedido, examinamos uma porção de questões relacionadas com IT, e os patrocinadores perguntaram por que não o ampliávamos, para falar de outras questões relativas à ciência.
Foi nesse ponto que comecei a perceber que vários desenvolvimentos na biologia tinham muito mais consequências no longo prazo, ou viriam a ter, do que a revolução na IT, porque dava acesso precisamente ao controle do comportamento humano, potencialmente, e uma certa compreensão das fontes do comportamento humano. Como um cientista social, isso constituía um grande problema para mim.
Uma das coisas interessantes que se tornaram rapidamente óbvias para mim era que, de fato, havia ocorrido uma grande reviravolta na nossa compreensão do impacto da genética. Cinquenta anos atrás, a maioria dos cientistas naturais e sociais diria que o comportamento humano é quase todo socialmente construído e deve muito pouco à biologia. Essa visão foi sacudida como resultado de um bocado de trabalho empírico nas ciências da vida.

Folha - E como foi a sua participação no Conselho de Bioética?
Fukuyama
- Todas as discussões e apresentações foram extraordinariamente ricas. Se é que posso dizer assim, toda a indústria da bioética, que é uma indústria razoavelmente grande nos Estados Unidos, foi criada deliberadamente pela comunidade de pesquisa científica para compartimentalizar e isolar potenciais objeções éticas ao tipo de trabalho que estavam fazendo...

Folha - Engenharia genética...
Fukuyama
- Sim, e muito do que se fazia era para se defenderem da regulamentação política aberta das atividades, algo bem compreensível de sua parte. Mas isso quer dizer que muito da bioética produzida nos Estados Unidos tende a ser muito favorável à ciência. As críticas tendem a ser muito abafadas. Uma das grandes coisas boas desse conselho atual é que a participação é muito diversa.

Folha - A genômica está ainda muito longe de ser capaz de intervir com precisão nos genes, com resultados previsíveis, menos ainda na complexa interação de multidões de genes e eventos ambientais que parecem caracterizar os traços comportamentais. O sr. concorda que o determinismo genético se encontra morto entre geneticistas praticantes, mas vai bem de saúde na percepção do público?
Fukuyama
- A maioria daqueles que estão profissionalmente envolvidos entendem essa relação complexa entre genes e ambiente, mas isso é difícil de explicar para várias pessoas, fazê-las entender que não é ou uma coisa ou outra, mas sim alguma interação complexa entre as duas.

Folha - Seu livro afirma que Aldous Huxley, e não George Orwell, é que estava certo, no final, no sentido de que a biotecnologia está fadada a remodelar a natureza humana a ponto de torná-la irreconhecível. Mas por que essa remodelagem é necessariamente errada e potencialmente ameaçadora?
Fukuyama
- Em primeiro lugar, eu não sei se será esse o caso. O que disse é que, depois de 50 anos, parece que Orwell estava errado quanto à IT [tecnologia da informação]. Por outro lado, teremos de esperar para ver se Huxley estava certo quanto à biotecnologia.
Acredito que há um par de razões pelas quais a biotecnologia pode ser problemática. A primeira tem a ver com a possibilidade de que pessoas exerçam controle social sobre outras pessoas, porque uma compreensão científica melhor do cérebro e das fontes biológicas do comportamento abre novas possibilidades para a engenharia social, o que já foi tentado em gerações passadas, sem sucesso, com um grande custo humano.
Já se pode ver isso com essa droga, Ritalin, usada para controlar a condição DDAH [distúrbio do déficit de atenção com hiperatividade], que é perfeitamente legítima em muitas circunstâncias, mas que nos Estados Unidos, particularmente, é empregada de forma extremamente ampla. Em muitos casos fica claro que ela é prescrita simplesmente como um meio de controlar, pela via médica, as crianças malcomportadas, em lugar dos meios mais tradicionais de educá-las, de despertar seu interesse por diferentes atividades. Acredito que essa é apenas a ponta do iceberg.

Folha - É correto dizer que o cerne de seu argumento é que a natureza humana não deve ser modificada?
Fukuyama
- Como eu procuro argumentar em meu livro, quando nós nos perguntamos sobre a origem de nossas noções de direitos humanos, já que relativamente poucas pessoas em nossa sociedade diriam que eles vêm de Deus, eles realmente estão baseados em algum entendimento do que seja a natureza humana. Se houver uma tecnologia suficientemente poderosa para começar a alterar algumas dessas características essenciais, é quase inevitável que ocorram efeitos políticos.

Folha - Mas não é obrigatório remeter a natureza humana a um conceito biológico de espécie, a universais do comportamento que teriam sido determinados pela evolução.
Fukuyama
- No fim das contas, muita coisa virá daí. Por exemplo: todo mundo diria, acredito, que ser capaz de falar uma língua é uma parte central da natureza humana, que o fato de você falar português ou inglês não é determinado geneticamente, mas que a capacidade de falar uma língua e de comunicar toda a riqueza das interações sociais decorre disso [dos genes]. Acho que é algo programado dentro de nós. Daí que o produto final, que é a linguagem, é uma interação complexa de genes, ambiente e cultura, mas os genes ainda estão na base disso.

Folha - Quais são as chances de que objeções meramente éticas sejam capazes de deter essas incursões sobre a natureza humana? Como o sr. mesmo reconhece no livro, a biomedicina está realizando somente aquilo que as pessoas estão dispostas a pagar para obter.
Fukuyama
- É muito difícil dizer. Uma das razões pelas quais é tão difícil regulamentar esse tipo de tecnologia é precisamente que muita gente a deseja, e que coisas potencialmente ruins estão misturadas com benefícios verdadeiros. Por outro lado, há muitos precedentes de criação de limites ao desenvolvimento tecnológico. Fazemos isso o tempo todo no próprio campo da biomedicina.

Folha - De volta à questão da natureza humana, eu gostaria de tornar as coisas um pouco mais concretas. Os iraquianos, por exemplo, não concordariam decerto com a definição ocidental de natureza humana e com a idéia de que a democracia liberal é o sistema político que menos interfere com padrões naturais de comportamento. Eles diriam que aquilo que está acontecendo agora no Iraque afeta, e muito, os seus padrões de comportamento, e que esses padrões não deveriam ser classificados como contrários à natureza.
Fukuyama
- Em primeiro lugar, eu não diria simplesmente que a democracia liberal é natural e que todo o resto é contrário à natureza. A questão é: existe algum tipo de história evolutiva, uma senda evolutiva que as sociedades humanas tendem a seguir enquanto se modernizam?
Eu diria que isso claramente existe e que, em certo sentido, a força relativa da democracia diante de, digamos, um Estado islâmico é algo que só se pode testar empiricamente. Teremos de ver se grandes contingentes de muçulmanos realmente escolherão viver nessas sociedades tradicionais, ou se vão querer enfrentar o desafio da modernização.

Folha - O sonho de uma política global universalista e eticamente orientada, tal como no ideal das Nações Unidas, parece estar em frangalhos, depois do atentado contra seu escritório em Bagdá, no qual morreu Sérgio Vieira de Mello. Há futuro para a ONU, num mundo em que o poder militar dos EUA não encontra oposição significativa?
Fukuyama
- O que se pode ver nos jornais de hoje [quinta-feira] é que os Estados Unidos estão se voltando para a ONU, de novo, e adotando uma nova atitude, com vistas a obter uma outra resolução que permita maior participação [de outros países no Iraque].
Uma das coisas que ficaram claras, acredito, é que, embora os EUA possam fazer a intervenção militar inicial, unilateralmente ou de forma virtualmente unilateral, de fato é preciso um tanto a mais de cooperação para lidar com a reconstrução no pós-guerra, no Afeganistão e no Iraque.
Acho que esse tipo de unilateralismo já alcançou um limite, muito claramente. O problema [ri] é que eles não querem admitir que estavam errados a esse respeito.


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