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São Paulo, domingo, 02 de março de 2003

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+ ciência

Chega ao Brasil livro de Luigi Luca Cavalli-Sforza, pioneiro do estudo das sociedades humanas por meio da informação contida no material genético

RAÍZES DA DIVERSIDADE

Arquivo pessoal
O geneticista italiano Luigi Luca Cavalli-Sforza, de Stanford


Reinaldo José Lopes
free-lance para a Folha

Na era dos bilionários e tecnológicos projetos de sequenciamento do genoma, chega a ser surreal se dar conta de que, há apenas 50 anos, o único instrumento que podia ser usado para estudar (indiretamente, é claro) a diversidade genética humana eram os registros paroquiais.
Precariedade de meios, excelência de resultados. Por incrível que pareça, foi a análise paciente das certidões de batismo, casamento e óbito guardadas século após século em igrejinhas do norte da Itália que deu aos cientistas os elementos para entender a deriva gênica, um dos mecanismos mais importantes e inesperados da evolução. Com base nos sobrenomes que iam e vinham entre os vilarejos, nas famílias que cresciam ou encolhiam, começou a surgir o primeiro esboço de uma teoria sobre o acaso na transmissão dos genes de geração a geração. Por trás desse improviso mais que bem-sucedido, além do apoio dos vigários de cada paróquia, estava um jovem professor da Universidade de Parma, Luigi Luca Cavalli-Sforza.
Hoje com 81 anos, Cavalli-Sforza se adaptou com versatilidade camaleônica a cada novo avanço da genética, de seu estudo pioneiro com os registros paroquiais, passando pela análise dos tipos sanguíneos e de sua distribuição nas populações humanas, até o sequenciamento de DNA capaz de estimar a data e o local de nascimento do primeira mulher Homo sapiens cujos descendentes ainda estão vivos.
O livro "Genes, Povos e Línguas", cuja primeira edição data de 1994 e que é lançado agora no Brasil, reúne as conclusões mais importantes que o trabalho do pesquisador genovês, ainda em plena atividade na Universidade Stanford, na Califórnia, revelou para o estudo da história genética e linguística da humanidade. O mote do livro, de resto presente nas duas gerações de geneticistas humanos influenciados por Cavalli-Sforza, é que a diversidade gerada por 150 mil anos de evolução do Homo sapiens está longe de ser suficiente para criar várias humanidades. No que tange à essência bioquímica da vida, todos são fundamentalmente iguais.
Há quem diga que o geneticista defenda a tese só da boca para fora. Desde o começo dos anos 90, Cavalli-Sforza e vários de seus colegas mais proeminentes ao redor do mundo se viram enredados na polêmica que cerca o Projeto Diversidade do Genoma Humano, também conhecido, entre organizações não-governamentais, pelo apelido menos honroso de Projeto Vampiro.
Explica-se: a idéia dos proponentes do projeto era realizar o mais extenso mapeamento já feito das variações genéticas que existem entre os diversos povos da Terra. A pesquisa daria destaque especial às populações indígenas dos cinco continentes. Graças ao isolamento cultural ou espacial, que em geral corresponderia ao isolamento genético, essas sociedades guardariam em seu DNA informações valiosas sobre a origem e a evolução dos vários ramos da humanidade.
Como vantagem adicional, uma análise nessa escala também seria capaz de mapear a suscetibilidade e a resistência de cada grupo humano às mais variadas doenças. A informação seria tão útil dentro de cada grupo étnico (para prever quais as chances de cada membro contrair uma enfermidade) quanto fora (elucidando quais as estratégias usadas pelo organismo de cada etnia contra doenças comuns em sua região para replicá-la em novos medicamentos ou formas de prevenção). Já que a quantidade de dados a ser recolhida seria colossal, Cavalli-Sforza e seus colegas idealizaram a criação de um banco com linhagens de células "imortais" para cada povo, sempre acessíveis aos cientistas. O que nenhum dos pesquisadores previa era a reação de populações indígenas mundo afora, capitaneada pela ONG canadense Rafi (Fundação Internacional para o Avanço Rural, extinta, que tem hoje um sucessor no Grupo ETC). O projeto foi acusado de querer comercializar os dados sobre os povos estudados. Esses, aliás, viam o lado histórico da pesquisa -cujo objetivo é elucidar quando e como aconteceram as principais ondas de povoamento no planeta- como uma ameaça às reivindicações por seus territórios tradicionais. Muitas etnias se recusaram a colaborar. "Talvez essa fundação tenha entendido mal os nossos propósitos, mas certamente ela também se aproveitou de nós para se autopromover", diz Cavalli-Sforza. "Como dispunham de uma vasta rede de contatos entre populações indígenas americanas e australianas, conseguiram retardar o nosso trabalho de mais de dez anos. Por sorte, hoje é geral a convicção de que o estudo da diversidade humana é necessário não apenas para a medicina preventiva, mas também é a melhor garantia contra o racismo", afirmou o pesquisador à Folha.

Além da polêmica
Restringir o trabalho de Cavalli-Sforza à faceta polêmica, porém, não faria sentido. "Genes, Povos e Línguas" expõe com didatismo admirável o que as análises genéticas e linguísticas revelaram sobre a origem e os movimentos dos povos no planeta.
A primeira coisa a ser notada é o impacto maciço da análise de DNA na reconstrução dessa história complexa. Foi só a partir dos anos 80 que as novas técnicas permitiram usar o código genético das mitocôndrias, que produzem energia para o metabolismo das células e só são transmitidas pelo lado materno, para atribuir a uma única mulher africana, que viveu há cerca de 150 mil anos, o título de "Eva". Seu DNA mitocondrial seria o ancestral comum do de todas as pessoas vivas hoje. Da mesma forma, a análise do cromossomo Y, que determina o sexo masculino e só é passado de pai para filho homem, possibilitou estimar que um "Adão" também teria vivido por volta da mesma época -embora certamente não fosse casado com "Eva".
Para Cavalli-Sforza, a consequência dessa origem comum e muito recente, em termos evolutivos, é a semelhança extrema entre as etnias humanas. Semelhança que, ao mesmo tempo, convive com a diversidade: a adaptação de curto prazo aos vários ambientes do planeta teve efeito não só sobre a aparência física, mas também sobre fatores como a resistência a doenças típicas de cada região ou os tipos sanguíneos. Seleção natural e puro acaso se mesclaram para criar essas diferenças. Entre os indígenas americanos, por exemplo, mais de 95% das pessoas têm o tipo sanguíneo O -seja porque ele era o mais frequente no pequeno grupo de primeiros ocupantes das Américas, seja porque ele conferia resistência a doenças como a sífilis.
O livro segue de perto como esses detalhes se refletem na grande expansão humana para fora da África. Mas o interesse dos pesquisadores não se detém apenas sobre o passado remoto. A análise de centenas de genes distintos revela, por exemplo, que os bascos descendem em grande parte de um povo que dominou a Europa no Paleolítico e só conseguiu manter uma identidade própria num pequeno bolsão montanhoso.
Os genes e as línguas da maior parte dos europeus modernos, por sua vez, parecem ser o resultado de duas grandes migrações: a dos primeiros agricultores do Oriente Médio, que substituíram ou absorveram os antigos caçadores do continente 9.000 anos atrás, e a de cavaleiros das estepes ucranianas que avançaram para o Ocidente mais de quatro milênios depois.
Para Cavalli-Sforza, a história de sucesso de todos os ramos da espécie humana tem uma raiz nos genes. "A base do desenvolvimento cultural é genética: a possibilidade de aumentar enormemente a comunicação através da linguagem e assim criar a cultura, entendida como acúmulo de conhecimentos através das gerações."
Essa raiz biológica, porém, não corresponde a um fator genético para cada característica humana: "É preciso dizer que é na biologia do comportamento, na qual é mais fácil resvalar para o racismo, que se encontram as maiores dificuldades para distinguir as influências genéticas e as do ambiente, da cultura e da sociedade".


Genes, Povos e Línguas
289 págs., R$ 36 de Luigi Luca Cavalli-Sforza. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj. 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/3167-0801)


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