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São Paulo, domingo, 02 de março de 2003

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Ciência em Dia

O esforço de guerra da biotecnologia

Marcelo Leite
editor de Ciência

A mobilização da comunidade biotecnológica/biomédica dos Estados Unidos depois do 11 de Setembro e do pânico do antraz postal deu frutos, e dos gordos: um orçamento de pesquisa de US$ 27,2 bilhões (ou a bagatela de mais de R$ 95 bilhões ao câmbio de R$ 3,50 por dólar) só para o maior financiador de pesquisas biomédicas, os NIH (Institutos Nacionais de Saúde dos EUA).
Chega a ser acabrunhante a comparação com a realidade da pesquisa -qualquer pesquisa, toda ela- no Brasil. Mesmo depois de poupado pelo governo Lula no corte de gastos, o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) permaneceu com a soma de R$ 2,1 bilhões para gastar em 2003, ou seja, menos de 1/40 do que foi posto à disposição dos NIH.
A palavra-chave para entender a prodigalidade do governo norte-americano com seus pesquisadores no campo da tecnociência biológica é "bioterrorismo". Pronunciada abertamente ou não, ela estava na cabeça de todos quando se decidiu conceder aos NIH US$ 3,79 bilhões a mais que em 2002, um aumento significativo de 16,2%. Foi decidido pelo Congresso, que deu ao setor biomédico somente US$ 10 milhões a menos do que havia sido solicitado na proposta do presidente George W. Bush.
O melhor indício dessa inclinação militar é o aumento ainda mais significativo, em termos percentuais, obtido por um dos braços dos NIH mais diretamente envolvidos na pesquisa de métodos e antídotos para enfrentar uma possível guerra biológica, o Niaid (Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, na abreviação em língua inglesa). Foi um avanço de 50% sobre os US$ 2,5 bilhões de sua dotação em 2002, passando neste ano a US$ 3,7 bilhões.
"Podemos todos declarar vitória nessa notável campanha de cinco anos", disse à newsletter "The Scientist" (www.the-scientist.com) Bill Brinkley, da Sociedade Americana de Bioquímica e Biologia Molecular e do Baylor College of Medicine (que fica em Houston, Texas, Estado que já foi governado por Bush).
Como já foi comentado neste espaço, em 1º de dezembro do ano passado, tal acréscimo de verbas governamentais vem bem a calhar para um setor em crise. Basta repetir o dado então mencionado da reportagem de Peg Brickley na mesma "The Scientist": quatro lançamentos de empresas biotecnológicas amealharam US$ 26 milhões em 2002, contra US$ 110 milhões que haviam sido levantados por dez companhias em 2001.
É muito difícil separar, hoje em dia, pelo menos no campo da genômica e da engenharia genética, o que seja aplicação industrial do que seja pesquisa básica ou acadêmica -sobretudo nos EUA. Países como o Brasil penam justamente para promover essa integração entre iniciativa privada e iniciativa científica, como fica evidente na monomania em que se transformou o lema da inovação, mas em países desenvolvidos ela é a regra.
Mais do que em qualquer outro ramo de pesquisa, a comunhão de interesses que ora se observa entre pesquisadores que viram empresários ou capitalistas com diplomas e prêmios de cientistas representa a essência do que se costuma chamar de tecnociência: a pesquisa movida não mais (só) por hipóteses, mas pela perspectiva de aplicação e lucro.
Uma forma mais educada de pôr as coisas seria dizer que a aplicação e o lucro potencial têm um peso cada vez maior na própria formulação das hipóteses científicas. Ou que uma escolha esperta do objeto de pesquisa pode amplificar um bocado a generosidade das burras do governo.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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