São Paulo, terça-feira, 02 de março de 2004

Próximo Texto | Índice

ASTRONÁUTICA

Administrador da Nasa critica principal peça de seu programa tripulado e defende plano espacial de Bush

Ônibus espacial é limitado, diz O'Keefe

Alberto César Araújo/Folha Imagem
Chefe da Nasa em torre do experimento LBA acima da floresta


SALVADOR NOGUEIRA
ENVIADO ESPECIAL A MANAUS

É o mais perto que um administrador da Nasa chegou de repudiar a peça central de seu programa tripulado. Sean O'Keefe não chega a qualificar o projeto do ônibus espacial, responsável pela morte de 14 astronautas até agora, como um fracasso mantido por mais de duas décadas pela agência americana. Mas quase chega lá.
"Eu acho que ele tem seus limites", afirma. "Não é manobrável, não é o jeito mais econômico de fazer coisas, não é a coisa mais eficiente para acesso à órbita terrestre baixa, e assim por diante."
Ironicamente, os americanos agora pretendem aposentar seus ônibus espaciais reutilizáveis até 2010 e fazer as coisas no espaço exatamente como os russos têm feito desde sempre -usando veículos separados para transporte de pessoal e de suprimentos.
O'Keefe, nomeado administrador da agência espacial americana em 2001, esteve em Manaus, anteontem, e em São José dos Campos, ontem. No Brasil, aproveitou a ocasião para conhecer o trabalho de parceria que a Nasa faz com pesquisadores daqui em estudos amazônicos, no chamado LBA, sigla em inglês para Experimento de Larga Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia.
O'Keefe também usou a visita para discutir os projetos conjuntos da Nasa com a Agência Espacial Brasileira, durante visita ao Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
Em entrevista concedida à Folha na capital do Amazonas, o administrador defendeu sua decisão de abandonar o Telescópio Espacial Hubble (que exigiria uma visita do ônibus espacial para permanecer funcionando além de 2008) e negou que a atitude indique uma incapacidade da agência para aceitar os riscos inerentes à exploração espacial.
Explicou também por que acredita que o plano do presidente americano George W. Bush para retomar viagens à Lua e depois ir a Marte é exeqüível. Leia a seguir alguns trechos da conversa.

 

Folha - Como a Nasa está trabalhando para que a nova iniciativa espacial de ir à Lua e a Marte não vá por água abaixo, como aconteceu antes quando a mesma proposta foi feita por George Bush, o pai, em 1989?
Sean O'Keefe -
Há provavelmente três coisas que contribuíram para isso. Primeiro de tudo, a liderança nacional do presidente. Sua noção de que o objetivo é a exploração, é sobre descoberta, é sobre o processo de desenvolver a tecnologia para explorar e atingir esses objetivos, em vez de identificar um destino e dizer "é para lá que vamos, por essa razão". Isso não é como os anos 1960, "vamos à Lua e vamos estar lá em uma data específica", é um tipo de foco de longo prazo sobre a estratégia e as razões para esse exercício.
O segundo grande fator que é diferente de 15 anos atrás é que a tecnologia mudou -dramaticamente. Se você pensa nos limites da tecnologia com que vivíamos 15 anos atrás e que pensávamos que fosse extremamente boa na época -nós não iríamos tolerar a velocidade de um computador, de um "laptop", se eu te trouxesse um de 1989 hoje e dissesse, "aí está, agora comece a coletar dados, fazer coisas, organizar pensamentos e tudo mais", você iria rejeitá-lo em questão de minutos. Então toda a revolução da tecnologia da informação tornou essa proposição mais exeqüível.
A terceira coisa é que estamos muito mais informados hoje do que estávamos há 15 anos, ou mesmo nos anos 1960, em termos do que pode ser obtido a partir da exploração da Lua, de Marte e além. Temos dois instrumentos robóticos em Marte neste exato instante fazendo algo que era só sonhado pelos cientistas alguns anos atrás, examinando evidências geológicas para determinar se houve presença de água em algum momento.

Folha - Mas as tecnologias que estão no foco central da exploração espacial, que são as que envolvem a colocação de coisas no espaço, não mudaram muito nesse período. Continuamos usando as mesmas técnicas e os mesmos foguetes desde os anos 1960 -parece ser uma barreira. Uma que a Nasa parecia querer romper, desenvolvendo um substituto para o ônibus espacial, ao menos até o presidente anunciar seu novo plano.
O'Keefe -
Com todo o respeito, eu acho que você fez um pequeno sumário de uma importante mudança de mercado que aconteceu nos últimos 15 anos. Havia então uma hipótese de trabalho de que o mercado iria exigir a habilidade de colocar pequenos e leves satélites de baixo custo em órbitas terrestres baixas. Então, as tecnologias de lançamento estavam sendo direcionadas para o propósito de lançar com grande freqüência. Isso não aconteceu. O mercado não emergiu.
O ônibus espacial foi projetado para ser um recurso que só vai até a órbita terrestre baixa -e é só. Ele nunca foi visto como algo que fosse fazer algo mais do que isso. Então o conceito inteiro de sua operação era o de garantir acesso freqüente à órbita terrestre baixa. Não é sobre isso que o presidente Bush está falando. Ele está falando sobre explorar ALÉM da órbita terrestre baixa -de volta à Lua, a Marte e ao Sistema Solar.

Folha - E sobre os riscos da exploração espacial, a Nasa está pronta para lidar com eles? O astrônomo real britânico, Martin Rees, é da opinião de que os programas espaciais governamentais desenvolveram tamanha aversão ao risco que não podem suportar o peso das falhas e catástrofes que seriam inerentes a planos mais audaciosos. A crise enfrentada pela Nasa após a perda do Columbia parece apoiar essa idéia -ela nem sequer pôde aceitar os riscos de enviar uma missão do ônibus espacial para manter o Telescópio Espacial Hubble... como poderia então assumir o risco de ir à Lua, por exemplo?
O'Keefe -
Bem, nós não vamos à Lua com o ônibus espacial. O objetivo que o presidente anunciou é o de usar o ônibus espacial para construir a Estação Espacial Internacional e aposentá-lo. Nós...

Folha - Sim, desculpe-me por interromper, mas eu não estou falando do ônibus espacial especificamente...
O'Keefe -
Claro que está. Foi exatamente o que me perguntou.

Folha - Não. Eu sei que não se pode ir à Lua no ônibus espacial. O que estou dizendo é que a observação do comportamento da Nasa no programa do ônibus espacial mostra que a agência precisa sempre enfatizar que está evitando todos os riscos para sair de crises após perdas catastróficas. E duvido que ir à Lua seja menos arriscado do que voar no ônibus espacial até uma órbita terrestre baixa...
O'Keefe -
Eu acho que você está errado. Basta você olhar para a história e pensar objetivamente. Um ano atrás, [estávamos vivendo] o acidente do Columbia, que foi uma tragédia de proporções enormes, e um ano depois o presidente está anunciando um movimento na direção de uma política espacial muito clara. Isso foi o que o Painel de Investigação de Acidente do Columbia disse que estava faltando.
Então, estou tendo dificuldades em reconciliar sua conclusão com os fatos, e os fatos sugerem que, se algo aconteceu, esse acidente foi um evento catalítico, algo que forçou uma mudança e nos concentrou em uma política diferente, mais focada, mais específica. Então, isso mostra menos aversão a risco e demonstra que estamos mais agudamente cientes do risco dessa máquina específica, e essa máquina específica é uma incrível maravilha da engenharia.
Mas não demonstrou ser tão segura quanto achamos que devia ser, e descobrimos a cada dia novas coisas sobre os limites de tentar colocar numa máquina só a capacidade de colocar carga, pessoas e realizar operações contínuas, fazendo tudo isso de um jeito que é, francamente, incrivelmente complicado. E não a projetamos de um jeito que iria otimizar alguma dessas funções. Ela faz todas elas razoavelmente bem.
Sobre sua proposição central, entretanto, eu não discordo, há uma linha muito fina entre grande sucesso e grande tragédia. E é com o que convivemos em cada missão, o tempo todo.

Folha - E...
O'Keefe -
E eu não posso deixar de lado o seu comentário sobre o Hubble.
Com essa máquina, com o ônibus espacial, não poderíamos ao mesmo tempo reformar o Hubble e cumprir todas as recomendações do Painel de Investigação do Acidente do Columbia.
Qual deve ser a escolha? Minha determinação foi "vamos cumprir essas recomendações". É isso. É tão básico assim. Não é uma questão de termos aversão a riscos ou não, é uma questão de, se estamos falando sério sobre melhorar a segurança dessa máquina até o final da década, como o presidente nos direcionou a fazer, então você precisa fazer escolhas.
E essas escolhas sugerem que, se pretendemos cumprir com todas as recomendações, não podemos fazer a missão de reforma com aquela máquina, o que reforça ainda mais o porquê de termos de aposentá-la.

Folha - Com tudo isso, o sr. classificaria o experimento do desenvolvimento do ônibus espacial como um fracasso?
O'Keefe -
Dificilmente eu poderia caracterizá-lo como um fracasso. Ele mostrou os limites da tecnologia para fazer as coisas que tentávamos fazer naquele tempo. Mas eu dificilmente chamaria de fracasso. Foi uma experiência em que aprendemos muito, certamente foi um grande contribuinte, se não o maior, para construir a Estação Espacial Internacional -não seria possível sem ele.


Próximo Texto: Chefe da Nasa discute projetos com o Inpe
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.