São Paulo, domingo, 02 de maio de 2010

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+Marcelo Leite:

Os filhos do guaraná


Muita coisa, entre a bebida tradicional e o refrigerante, foi se perdendo


A cerca de 140 km de Parintins (AM) vivem cerca de 10 mil índios saterés-maués. Falantes da língua de mesmo nome do tronco tupi, habitam comunidades juntos aos rios Andirá e Marau, bem na fronteira entre Amazonas e Pará.
Sem os saterés-maués, o Brasil não teria dado ao mundo seu principal legado para a civilização, depois do samba, da caipirinha e da feijoada: o guaraná. Eles domesticaram os arbustos do gênero Paullinia e os transformaram numa cultura tradicional.
As frutinhas vermelhas e pretas, torradas, servem para o preparo de uma bebida estimulante e com função cerimonial, o çapó. Assim como seus heróis míticos, também o guaraná saiu do Noçoquém, "lá onde as pedras falam". Os saterés-maués dizem que são "os filhos do guaraná".
Não estranha, assim, que tratem a bebida com mais reverência do que nós, nas festinhas de aniversário de criança. Talvez por essa conexão infantil, o refrigerante tornou-se móvel preferencial do banzo que acomete brasileiros expatriados. Pagam os olhos da cara pelas garrafinhas verdes, até mais que por uma de cachaça.
Do çapó ao néctar apelidado de guaraná "champanhe", contudo, muita coisa se perdeu. Sobrou o cachinho de Paullinia no rótulo. Talvez ainda entre na fórmula do refri quantidade desprezível da fruta primordial, mas pouco importa. Nada mais tem a ver com a beberagem dos saterés-maués.
Entre os índios, guaraná é coisa séria. Uma tradição que remonta ao século 17, pelo menos. Foi quando padres jesuítas registraram seu uso pela primeira vez por escrito. Com tanta cafeína quanto o chá preto e o café, ou até mais, "dá tão grandes forças, que indo os índios à caça, um dia até o outro não têm fome", como escreveu o padre João Felipe Betendorf em 1669 e se pode ler na página do Instituto Socioambiental (pib.so cioambiental.org), o ISA.
"Cabe à mulher do anfitrião ralar o guaraná, operação feita com uma língua de pirarucu", narra Anthony Henman no verbete. "Uma cuia aberta da espécie Crescentia cujete é colocada em cima de um suporte chamado patauí e enchida de água até um quarto do seu volume total."
"A ação de "ralar" o guaraná molhado não busca a transformação do bastão em pó, como ocorre com o guaraná seco. Antes, trabalha-se o guaraná para que forme uma baba, uma viscosidade que adere ao ralo e ao pedaço do bastão em uso, sendo dissolvida n'água mediante a periódica submersão dos dedos da raladora."
O marido recebe uma cuia das mãos da mulher e bebe um gole. Passa o recipiente adiante, começando pelos mais velhos e por visitantes ilustres. Cada um deve beber um pouco, mas sem esgotar a cuia.
Só o anfitrião pode fazê-lo. Quando isso acontece, o homem pode pedir à mulher que encha a cuia de novo. É sinal de que quer que a conversa continue, e o ciclo pode repetir-se por horas. Não raro o çapó vem acompanhado do tauari, charuto de tabaco e casca de árvore.
É possível passar muitos dias numa comunidade sateré-maué sem presenciar o ritual. Não é para qualquer um. A maioria dos brancos terá de contentar-se com conhecê-lo por fontes secundárias, o que nem por isso lhe tira o interesse e o refinamento.
Na terra dos saterés-maués, ninguém achará -pelo menos não nos dias normais- índios adultos nus, pintados ou com cocares. Sandálias de dedo e roupas multicoloridas são a regra. Não há malocas. Essas coisas nós lhes demos, ou tiramos. Bebemos de sua bebida sem sabê-la. Somos os netos ingratos do guaraná, e ainda nos queremos civilizados.

MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008). Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br



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