São Paulo, domingo, 02 de junho de 2002

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+ ciência

O espírito de Wallace

Reprodução
Fotografia mostra Wallace aos 24 anos, dois antes de seu embarque para a Amazônia



Dois livros resgatam o legado do naturalista britânico que intuiu a teoria da evolução paralelamente a Darwin e que teve seu nome relegado ao segundo lugar na história


Claudio Angelo
Editor-assistente de Ciência

Se fosse flagrado hoje por um agente da Polícia Federal em qualquer lugar da Amazônia, o cidadão britânico Alfred Russel Wallace provavelmente seria preso por biopirataria. Afinal, seu ganha-pão consistia em capturar espécimes de peixes, e, sobretudo, aves e insetos raros e despachá-los para museus e coleções privadas na Europa. Só no Pará e no Amazonas ele passou quase quatro anos fazendo isso. Wallace, no entanto, ganhou notoriedade por outro motivo: as observações que ele fez em suas viagens pelos trópicos como coletor free-lancer, no século 19, levaram-no a propor uma teoria para a origem das espécies baseada num mecanismo que ele chamou de "sobrevivência do mais apto" em uma carta enviada ao naturalista Charles Darwin, em 1858. A carta acelerou a publicação de um livro que Darwin vinha ruminando havia anos -"A Origem das Espécies"-, baseado no mesmíssimo princípio. Do trabalho de ambos nasceu o modelo da evolução pela seleção natural, a idéia que mudou para sempre a história da biologia. Mas enquanto o nome de Darwin conquistou uma cadeira cativa na história da ciência e até no imaginário popular, Wallace, que no ano de sua morte (1914) era considerado um dos cientistas mais importantes do mundo, parece ter sido relegado a um certo oblívio. Por que razão, além de deselegância, a expressão corrente para designar o pensamento evolucionista dominante é "darwinismo" e não "darwin-wallaceanismo"? Dois livros lançados nos últimos meses, um nos EUA e um no Brasil, ajudam a resgatar o legado do herói esquecido da evolução. Na biografia "Alfred Russel Wallace - A Life", de 2001, o britânico Peter Raby reconstrói detalhes da vida privada do naturalista, geralmente menosprezada pelos biógrafos que procuram provar a tese de que Wallace efetivamente chegou à sua histórica conclusão sobre a divergência entre as espécies antes de Darwin -e que este teria se aproveitado das idéias do colega para escrever o capítulo que trata da divergência em "A Origem das Espécies". O Wallace da obra de Raby é um homem comum. O gênio dá lugar a um vitoriano tímido, filho de uma família que perdeu tudo quando ele ainda era criança, muito mais preocupado em ganhar a vida do que em produzir uma revolução no pensamento científico -ironicamente, Alfred acabou revolucionando a ciência, mas nunca conseguiu um emprego formal após a publicação de sua teoria da evolução. Segundo Raby, Wallace se sentiu honrado, não traído, quando soube que seu trabalho havia sido apresentado juntamente com o de Darwin na célebre leitura da Linnean Society, em 1º de julho de 1858. "Eu mandei para o sr. Darwin um ensaio sobre um tema a respeito do qual ele está escrevendo um grande trabalho agora", escreveu em 1858 à mãe, Mary Anne, da ilha de Ternate, na Indonésia. "Ele o mostrou ao dr. [Joseph" Hooker e a sir Charles Lyell, que o tomaram em tão alta conta que fizeram com que ele fosse lido perante a Linnean Society. Isso me assegura uma relação com esses homens eminentes quando eu voltar."

Trabalho inédito
A obra mais recente, "Peixes do Rio Negro", que saiu em abril pela Edusp, é uma espécie de livro póstumo do próprio Wallace. Ela reúne, pela primeira vez, os 212 desenhos a lápis que o naturalista fez dos peixes da região do Negro, Içana e Uaupês entre 1850 e 1852, e que ficaram até agora fora do alcance do público geral, engavetados no Museu de História Natural de Londres -os espécimes coletados foram todos perdidos num incêndio.
O material foi reunido pela bióloga Mônica de Toledo-Piza, da USP, que se debruçou sobre os desenhos enquanto estudava a ictiofauna da região e acabou identificando neles pelo menos uma espécie nova, que batizou de Hydrolycus wallacei. Prova de que, mesmo 88 anos após sua morte, Alfred Russel Wallace continua contribuindo com a ciência.
Nascido em 1823 em Usk, no país de Gales, Alfred Wallace chegou ao porto de Belém aos 26 anos, em 26 de maio de 1848, acompanhado do colega Henry Walter Bates. Ambos tinham um contrato com o Jardim Botânico Real para enviar amostras de plantas coletadas na Amazônia. A justificativa científica desse trabalho de naturalistas mercenários era contribuir para "a solução do problema da origem das espécies", que atormentava os círculos científicos europeus.
A idéia da evolução pela seleção natural, mostra Raby, já vinha fermentando nas mentes dos naturalistas da época. No livro "Vestiges", o britânico Robert Chambers dizia que as espécies se transmutavam, desenvolviam-se e progrediam, embora não identificasse o mecanismo pelo qual isso ocorria (lembre-se, os genes ainda estavam longe de entrar na história). Havia também o trabalho de Charles Lyell, descobridor do tempo geológico -e, mais tarde, amigo e incentivador de Wallace-, que ajudou a derrubar os cálculos baseados na cronologia bíblica para a idade da Terra. Havia Malthus, cujas idéias deram tanto a Wallace quanto a Darwin o estalo a respeito da sobrevivência do mais apto. E havia o próprio Darwin, já um naturalista famoso então, cujo livro "Viagens" relatava as diferenças entre espécies nas ilhas do Pacífico.
Na Amazônia Wallace começou a exercer suas observações sobre as fronteiras geográficas entre as espécies. Também começou a gestar as "pequenas heresias" que, mais tarde, acabariam por afastá-lo do "mainstream" científico vitoriano: o mesmerismo (que evoluiria para a crença em comunicações com espíritos) e o estudo da mente dos ditos selvagens. Wallace acreditava que os humanos nasciam todos dotados de um "hardware" mental e moral capaz de guiar a espécie ao inexorável estado de harmonia, justiça e perfeição. Darwin, que considerava os humanos apenas uma espécie com sorte no baralho evolutivo, nunca aceitou a idéia. Foi essa, não a questão da prioridade, a grande rixa entre os dois.
Após mais de um ano de coletas no Pará e uma ruptura inexplicada da sociedade com Bates, Wallace partiu para Manaus, na foz do rio Negro. Seu objetivo era subir o rio para coletar espécies raras de ave, como o galo-da-serra. Seu irmão, Herbert, viera da Inglaterra animado com as perspectivas do trabalho de naturalista e começou seu aprendizado em Belém. Apesar do interesse nas aves, Wallace ficou surpreso com a diversidade da fauna aquática do Negro e de seus afluentes, região à qual foi o primeiro europeu a chegar.
Sua curiosidade e extraordinária capacidade de trabalho levavam-no a desenhar cuidadosamente cada nova espécie tão logo o animal era capturado. Para evitar perder a luz para os desenhos e os peixes para o calor, por mais de uma vez Wallace desenhou com as mãos em brasa pelas picadas dos maruins. Alguns espécimes foram objeto de um trabalho meticuloso de dissecação, como revelam as observações anexas aos desenhos: "Estômago cheio de escamas. Intestinos pequenos, bexiga natatória dupla moderada". Em alguns casos, Wallace limita-se a um prosaico "bom para comer".


Enquanto os cientistas da época mergulhavam em debates puramente acadêmicos, Wallace discutiu política fundiária, conservação de florestas e até pregou contra a vacinação obrigatória no Reino Unido; perdeu quase todas as suas batalhas


A Amazônia não deixou marcas apenas no pensamento de Wallace. Em 1851, enquanto ele viajava pelo rio Negro, uma grande epidemia de febre amarela se abateu sobre a calha do Amazonas e de seus principais afluentes. Alfred sobreviveu por pouco. Herbert, em Belém, também foi contagiado, mas não resistiu à doença e morreu, aos 22 anos. Seu irmão só teria a notícia meses depois de ele ser enterrado, na capital paraense. Um segundo grande revés ocorreria em 1852, quando Wallace julgava ter conseguido dinheiro suficiente para se estabelecer em Londres. As primeiras coleções juntadas por ele no Negro foram retidas pela alfândega de Manaus. Havia suspeita de que se tratasse de produtos de contrabando, algo que já não era novidade na Amazônia do século 19. Mais uma vez, o naturalista só teve a notícia bem depois. Não havia outra solução que não embarcar de volta à Inglaterra com todos os espécimes coletados ao longo de dois anos. No total, Wallace levou consigo 20 caixas e pacotes, além de alguns animais vivos. Só para perder tudo num incêndio a bordo do navio que o levava de volta, o Helen. O prejuízo financeiro foi estimado em 500 libras esterlinas (uma soma respeitável na época). O científico é incalculável: todos os diários da expedição ao rio Negro viraram cinza. Além de umas poucas camisas e um relógio, o jovem Alfred só salvou uma caixa metálica contendo os desenhos dos peixes, que guardou consigo por 50 anos antes de doá-los ao Museu Britânico (hoje Museu de História Natural), em 1904.

Para o oriente
Após a estréia amazônica, Wallace decide continuar viajando. Seus próximos destinos são o arquipélago malaio e a Indonésia, onde passaria oito anos e de onde sairiam seus trabalhos científicos clássicos: o "paper" de Sarawak, no qual enuncia pela primeira vez sua teoria sobre a causa das diferenças entre espécies que habitam ilhas ("novas espécies devem ter sido criadas em cada uma a partir do plano das [espécies" preexistentes") e, mais tarde, o artigo sobre a seleção natural, escrito enquanto ele se recuperava de uma crise de malária na ilha de Ternate, na atual Indonésia. Por mais que a documentação de Darwin sobre a origem das espécies seja inegavelmente mais extensa do que a de Wallace, é notável que este tenha chegado à mesma conclusão em tão pouco tempo. Wallace tinha 35 anos e muito pouca experiência -toda ela prática- quando escreveu a famosa carta a Darwin contendo o esboço da teoria. Além do mais, ele pertencia a uma espécie de segunda classe de naturalistas, a dos coletores profissionais. Esses profissionais faziam o "trabalho sujo", em campo, coletando espécimes que seriam analisados pelos "verdadeiros" cientistas, geralmente aristocratas que não precisavam se preocupar com o pão de cada dia. O próprio Darwin pertencia a essa categoria. Certa vez, comentou com Thomas Henry Huxley (o maior apóstolo do darwinismo e avô de Aldous, autor de "Admirável Mundo Novo") sobre Bates, o quão lamentável era que um rapaz tão brilhante precisasse trabalhar para ganhar a vida. Sua contribuição à teoria evolutiva fez Wallace mudar de classe social dentro da comunidade científica. Tornou-se um visitante da Linnean Society, a confraria que reunia a nata das ciências naturais britânicas. E um defensor ardoroso de Darwin num momento em que grandes mentes ainda aderiam ao criacionismo. Um dos maiores presentes de Peter Raby ao leitor é justamente o retrato que ele faz da atmosfera acadêmica vitoriana através das cartas de Alfred Wallace. Está todo mundo lá: Charles Lyell, Joseph Hooker, Richard Spruce e outros fundadores da história natural. Thomas Huxley, escudeiro de Darwin, aparece em toda a sua arrogância demolindo os argumentos criacionistas de sir Richard Owen (o célebre cientista que cunhou a palavra "dinossauro", mas que rejeitou a seleção natural até a morte). O mesmo Huxley, criador da expressão agnosticismo, é mostrado escarnecendo Wallace quando este se converte ao espiritualismo.

Vozes do além
A crença nas comunicações com as almas dos mortos e a tentativa de provar cientificamente o fenômeno -ele escreveu vários artigos a respeito, na Europa e nos EUA- respondem em parte por que Wallace quase desapareceu da memória coletiva. Com sua irmã, Fanny, ele frequentava sessões mediúnicas nas quais os mortos supostamente falavam por meio de batidas na mesa e nunca mudou de idéia mesmo após denúncias graves de charlatanismo contra médiuns que visitava. A crença no espiritualismo tornou-se ainda mais forte após a morte de seu filho, Herbert, para horror de Huxley -que chegou a desaprovar sua indicação para um emprego público por conta disso.
Enquanto seus colegas mergulhavam em debates acadêmicos sólidos e menosprezavam as fronteiras da ciência, Alfred sempre fez questão de se envolver em investigações não-convencionais e em debates políticos. Manifestou-se contra os cercamentos na Inglaterra, na mesma época em que concorria a uma pensão vitalícia do Estado britânico, após ter sido recusado para vários cargos (a tal pensão acabou saindo, por influência de Darwin sobre os lordes que a concediam). Escreveu um visionário plano de manejo da floresta Epping, uma das últimas reservas naturais dos arredores de Londres, que estava sendo destruída pelos loteamentos -pelo qual ele bem poderia receber o título de fundador do ambientalismo moderno.
Também defendeu a nacionalização das ferrovias e o socialismo, um sistema que, segundo ele, poderia unir o progresso material da sociedade européia com a justiça social que observou entre os nativos da América do Sul e da Indonésia. "Se houver um governo socialista, como ele deverá ser?", pergunta em um artigo, profetizando a ascensão do trabalhismo no Reino Unido. Curiosamente, sua persona militante pregou contra a vacinação obrigatória, que Wallace considerava uma violação ao direito de autodeterminação. No final da vida, estava recorrendo à astronomia para provar sua tese de uma "inteligência superior" contra o "acaso" de Darwin.
Wallace perdeu quase todas as suas batalhas políticas e científicas. Seu plano de manejo para a floresta Epping foi rejeitado. Os cercamentos aconteceram e a vacinação (felizmente) continuou obrigatória. Ninguém nunca demonstrou a existência de espíritos e o desígnio divino foi definitivamente banido da ciência da era pós-seleção natural. O esquecimento do seu legado, diz Raby, "foi quase um ato voluntário de auto-dissolução wallaceana". Mas, dos grandes naturalistas do século 19, talvez Wallace tenha sido o único filósofo verdadeiro.


Alfred Russel Wallace - A Life
de Peter Raby
340 págs., US$ 26,95 Princeton University Press, EUA.



Onde encomendar A obra pode ser encomendada, em São Paulo, à livraria Fnac (tel. 0/xx/11/3097-0022) e, no Rio, à livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/21/533-2237).


Peixes do Rio Negro
de Alfred Russel Wallace. Organização Mônica de Toledo-Piza Ragazzo.
518 págs., R$ 120 Edusp/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo



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