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DOENÇAS EMERGENTES
Brasileiro integra equipe internacional que estuda os agentes causadores de febre hemorrágica
Vírus perigoso consegue escapar da África
CLAUDIO ANGELO
DA REPORTAGEM LOCAL
Cabelos compridos, calça jeans
surrada e barba. O virologista
Paolo Zanotto parece um profeta,
ou roqueiro. As duas alternativas
estão certas: Zanotto, 45, toca guitarra por lazer -e faz profecias
por dever de ofício. O pesquisador foi um dos que previram, em
1998, que o vírus da febre do vale
Rift (RVFV) poderia escapar do
continente africano. Na semana
passada, uma epidemia atingiu a
Arábia Saudita e o Iêmen. Até sábado, havia 77 mortos.
Zanotto, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), integra um grupo internacional de
pesquisadores que estuda o
RVFV. Ele é um dos chamados vírus de febre hemorrágica, os mais
assustadores do planeta. São parasitas da laia do ebola, que chega
a matar 88% das suas vítimas, e do
lassa, que liquida 25% delas.
Eles causam pânico menos pelo
número de vítimas que já fizeram
(a maioria se restringiu a surtos
isolados na África) do que pela
violência e rapidez com que matam, destruindo os vasos sanguíneos e provocando hemorragia
interna. "O sujeito derrete por
dentro", resume Zanotto.
O temor dos pesquisadores, que
já rendeu assunto para livros e filmes na década de 90, é que um
-ou mais- desses supervírus
escape da selva africana para alguma grande cidade do planeta.
Estréia egípcia
Desde 1995, a equipe "virtual"
formada por cientistas dos Institutos Pasteur de Paris e Dacar (Senegal) e da Unifesp analisa o código genético e a evolução do vírus
da febre do vale Rift.
Identificado em 1930 entre ovelhas na região do vale Rift, no
Quênia, o vírus começou a mostrar seu potencial destrutivo em
1977. Naquele ano, uma epidemia
atingiu cerca de 200 mil pessoas
no Egito, matando 600.
"Até então, ele era tido como
um problema veterinário, restrito
aos países da África subsaariana",
disse à Folha o virologista senegalês Amadou Alpha Sall, 31, que
coordena a equipe ao lado de Zanotto e Michèle Bouloy, do Instituto Pasteur de Paris. De lá para
cá, o parasita já provocou surtos
por todo o continente africano,
escapando para a península Arábica no final de setembro.
O vírus provoca aborto e mortes
em rebanhos no continente. Em
humanos, pode causar encefalite,
cegueira e febre hemorrágica, matando até 10% dos pacientes. A
média é baixa, se comparada à de
conterrâneos mais ilustres, como
o ebola. Mas o RVFV, afirmam os
pesquisadores, tem algumas características que o tornam potencialmente mais perigoso.
Pior dos mundos
Para começo de conversa, o
RVFV é um arbovírus (jargão
científico para os vírus transmitidos por insetos). E um arbovírus
para lá de promíscuo.
Enquanto a maioria dos micróbios é carregada por um inseto específico (o causador da febre
amarela, por exemplo, só viaja em
mosquitos do gênero Aedes), ele
pode ser transmitido por nove espécies de três gêneros de mosquito (Culex, Aedes e Mansonia),
além de flebótomos.
"É provavelmente o vírus de febre hemorrágica com maior espectro de vetores entre mosquitos", afirma Sall.
Outra idiossincrasia do RVFV
que preocupa os estudiosos é a
sua capacidade de mutação. Seus
genes são codificados em RNA,
molécula com tendência a sofrer
pequenas mutações -chamadas
de "drifts", em inglês.
No ano passado, os cientistas
descobriram que, além dos
"drifts", o vírus também sofre
"shifts", rearranjos radicais do genoma (veja quadro). Esse tipo de
mutação cria linhagens inteiramente novas do parasita, contra
as quais nem gado nem seres humanos têm imunidade. Os cientistas acreditam que essa tenha sido a causa da alta mortalidade da
epidemia de 1977 no Egito.
São os "shifts" que tornam impossível a obtenção de vacina definitiva contra o vírus influenza,
que causa a gripe. Com o RVFV é
a mesma coisa. "Esse vírus junta o
pior dos três mundos: causa febre
hemorrágica, é transmitido por
qualquer mosquito e é extremamente mutante", diz Zanotto.
Evolução acelerada
O virologista brasileiro descobriu que, nos últimos 60 anos, a
taxa evolutiva do RVFV aumentou 15 vezes -ou seja, o micróbio
está evoluindo 15 vezes mais depressa. "Ainda não sabemos por
que isso está acontecendo, mas
pode significar uma explosão na
população do vírus."
Segundo Zanotto, o microrganismo "aprendeu" a se adaptar
em ambientes distintos, como a
selva tropical, a savana e o sahel
africano (a zona de transição entre o deserto do Saara e a floresta).
As razões da expansão da doença dentro do continente estão ligadas ao aumento da população
humana e de suas atividades.
Foi uma importação de ovelhas
da Europa em 1930 que tirou o
RVFV de seu ciclo selvagem e o
trouxe para o contato humano.
Sem a imunidade de outros mamíferos locais, as ovelhas foram
infectadas por mosquitos.
Foi provavelmente a circulação
de gado pelo interior do continente que o espalhou. E os mosquitos
que transmitem o vírus são bem
adaptados ao ambiente urbano.
"O vírus enxerga o aumento da
população humana como um peixe enxerga o oceano", compara
Zanotto. Com muitos potenciais
hospedeiros à disposição, mais linhagens virais tendem a surgir.
"Estamos vendo o momento
histórico em que ele deixa a África
pela primeira vez", afirma o virologista. ""É como se estivéssemos
olhando um retrato do passado,
quando a febre amarela começou
a se espalhar pelo mundo."
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