São Paulo, segunda-feira, 02 de outubro de 2000

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DOENÇAS EMERGENTES
Brasileiro integra equipe internacional que estuda os agentes causadores de febre hemorrágica
Vírus perigoso consegue escapar da África

CLAUDIO ANGELO
DA REPORTAGEM LOCAL

Cabelos compridos, calça jeans surrada e barba. O virologista Paolo Zanotto parece um profeta, ou roqueiro. As duas alternativas estão certas: Zanotto, 45, toca guitarra por lazer -e faz profecias por dever de ofício. O pesquisador foi um dos que previram, em 1998, que o vírus da febre do vale Rift (RVFV) poderia escapar do continente africano. Na semana passada, uma epidemia atingiu a Arábia Saudita e o Iêmen. Até sábado, havia 77 mortos.
Zanotto, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), integra um grupo internacional de pesquisadores que estuda o RVFV. Ele é um dos chamados vírus de febre hemorrágica, os mais assustadores do planeta. São parasitas da laia do ebola, que chega a matar 88% das suas vítimas, e do lassa, que liquida 25% delas.
Eles causam pânico menos pelo número de vítimas que já fizeram (a maioria se restringiu a surtos isolados na África) do que pela violência e rapidez com que matam, destruindo os vasos sanguíneos e provocando hemorragia interna. "O sujeito derrete por dentro", resume Zanotto.
O temor dos pesquisadores, que já rendeu assunto para livros e filmes na década de 90, é que um -ou mais- desses supervírus escape da selva africana para alguma grande cidade do planeta.

Estréia egípcia
Desde 1995, a equipe "virtual" formada por cientistas dos Institutos Pasteur de Paris e Dacar (Senegal) e da Unifesp analisa o código genético e a evolução do vírus da febre do vale Rift.
Identificado em 1930 entre ovelhas na região do vale Rift, no Quênia, o vírus começou a mostrar seu potencial destrutivo em 1977. Naquele ano, uma epidemia atingiu cerca de 200 mil pessoas no Egito, matando 600.
"Até então, ele era tido como um problema veterinário, restrito aos países da África subsaariana", disse à Folha o virologista senegalês Amadou Alpha Sall, 31, que coordena a equipe ao lado de Zanotto e Michèle Bouloy, do Instituto Pasteur de Paris. De lá para cá, o parasita já provocou surtos por todo o continente africano, escapando para a península Arábica no final de setembro.
O vírus provoca aborto e mortes em rebanhos no continente. Em humanos, pode causar encefalite, cegueira e febre hemorrágica, matando até 10% dos pacientes. A média é baixa, se comparada à de conterrâneos mais ilustres, como o ebola. Mas o RVFV, afirmam os pesquisadores, tem algumas características que o tornam potencialmente mais perigoso.

Pior dos mundos
Para começo de conversa, o RVFV é um arbovírus (jargão científico para os vírus transmitidos por insetos). E um arbovírus para lá de promíscuo.
Enquanto a maioria dos micróbios é carregada por um inseto específico (o causador da febre amarela, por exemplo, só viaja em mosquitos do gênero Aedes), ele pode ser transmitido por nove espécies de três gêneros de mosquito (Culex, Aedes e Mansonia), além de flebótomos.
"É provavelmente o vírus de febre hemorrágica com maior espectro de vetores entre mosquitos", afirma Sall.
Outra idiossincrasia do RVFV que preocupa os estudiosos é a sua capacidade de mutação. Seus genes são codificados em RNA, molécula com tendência a sofrer pequenas mutações -chamadas de "drifts", em inglês.
No ano passado, os cientistas descobriram que, além dos "drifts", o vírus também sofre "shifts", rearranjos radicais do genoma (veja quadro). Esse tipo de mutação cria linhagens inteiramente novas do parasita, contra as quais nem gado nem seres humanos têm imunidade. Os cientistas acreditam que essa tenha sido a causa da alta mortalidade da epidemia de 1977 no Egito.
São os "shifts" que tornam impossível a obtenção de vacina definitiva contra o vírus influenza, que causa a gripe. Com o RVFV é a mesma coisa. "Esse vírus junta o pior dos três mundos: causa febre hemorrágica, é transmitido por qualquer mosquito e é extremamente mutante", diz Zanotto.

Evolução acelerada
O virologista brasileiro descobriu que, nos últimos 60 anos, a taxa evolutiva do RVFV aumentou 15 vezes -ou seja, o micróbio está evoluindo 15 vezes mais depressa. "Ainda não sabemos por que isso está acontecendo, mas pode significar uma explosão na população do vírus."
Segundo Zanotto, o microrganismo "aprendeu" a se adaptar em ambientes distintos, como a selva tropical, a savana e o sahel africano (a zona de transição entre o deserto do Saara e a floresta).
As razões da expansão da doença dentro do continente estão ligadas ao aumento da população humana e de suas atividades.
Foi uma importação de ovelhas da Europa em 1930 que tirou o RVFV de seu ciclo selvagem e o trouxe para o contato humano. Sem a imunidade de outros mamíferos locais, as ovelhas foram infectadas por mosquitos.
Foi provavelmente a circulação de gado pelo interior do continente que o espalhou. E os mosquitos que transmitem o vírus são bem adaptados ao ambiente urbano.
"O vírus enxerga o aumento da população humana como um peixe enxerga o oceano", compara Zanotto. Com muitos potenciais hospedeiros à disposição, mais linhagens virais tendem a surgir.
"Estamos vendo o momento histórico em que ele deixa a África pela primeira vez", afirma o virologista. ""É como se estivéssemos olhando um retrato do passado, quando a febre amarela começou a se espalhar pelo mundo."


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