São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

Texto Anterior | Índice

Ciência em Dia

Mosquitos transgênicos em "Jurassic Park"

Marcelo Leite
editor de Ciência

Parece filme de ficção científica, do gênero "Jurassic Park": alterar os genes de mosquitos para que eles se tornem incapazes de transmitir doenças que flagelam populações pobres do Terceiro Mundo, como malária e dengue.
A idéia não é nova, mas ganhou alento com a publicação do genoma do principal vetor da malária na África, o Anopheles gambiae (no Brasil, predomina o primo A. darlingi), há cerca de um mês. (Na mesma semana foi divulgada a sequência de DNA do mais letal micróbio causador da malária, o Plasmodium falciparum; em terras brasileiras, é mais comum o P. vivax, menos mortal.)
Além do impulso, os mosquitos transgênicos ganharam também críticas.
As objeções vieram de entomologistas, os especialistas no estudo de insetos, e ganharam destaque numa reportagem de Martin Enserink que saiu no mesmo número da revista "Science" (4.out.2002, vol. 298, págs. 92-93) com o genoma do mosquito. Eles se queixam de que a ciência da moda (biologia molecular) carreia o grosso dos recursos de pesquisa para estratégias que empreguem engenharia genética, como a transgenia de mosquitos (inserção de genes que impeçam a multiplicação do plasmódio no interior do mosquito).
Na opinião dos entomologistas, a estratégia, para dar certo, precisaria responder a uma série de questões que nem estariam sendo formuladas. Veja a relação compilada por Enserink:
"Os mosquitos projetados serão capazes de sobreviver no ambiente selvagem, por exemplo? De se dispersar, encontrar parceiros, ter prole viável? Em caso afirmativo, quanto tempo demoraria para que seus genes de resistência ao parasita se disseminassem? Ajudaria se os mosquitos resistentes tivessem menos parasitas na saliva do que os selvagens, ou teriam de ser completamente resistentes? Qual parcela da população teria de se tornar transgênica para realmente fazer uma quebra na taxa de transmissão da malária? E qual o risco de que sua nova bagagem genética os transforme em vetores para outras doenças?"
A última questão decerto é a que mais chama a atenção do leigo, por sua semelhança com o cenário "Jurassic Park". Pode ser de probabilidade remota, mas a perspectiva de um efeito devastador tende a sufocar mesmo as mais sóbrias análises estatísticas. Se até os entomologistas acham que esse tipo de risco tem de ser excluído, por que razão as pessoas comuns teriam de embarcar no trem da alegria transgênica?
No Brasil, uma das maiores especialistas nessa estratégia é Margareth de Lara Capurro, da USP. Ela discorda da analogia com o filme de Steven Spielberg: "[Isso" não é ciência. O que a gente mais faz é controle". Capurro concorda, porém, que a colaboração com entomologistas e ecólogos é fundamental para definir a estratégia de introdução dos insetos modificados na natureza. E diz que seu grupo se encontra exatamente nessa fase de aproximação com seus colegas biólogos de outros departamentos.
A pesquisadora da USP defende a pesquisa com mosquitos transgênicos até no caso de ela jamais dar certo: "Mesmo que nunca se consiga uma estratégia ecológica, como você faria para testar esse monte de coisas dentro dos mosquitos?" -questiona, referindo-se ao que a pesquisa revela sobre as moléculas preferidas do mosquito e do plasmódio.
Boa pergunta -tão boa quanto as da reportagem de Enserink.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br



Texto Anterior: Micro/Macro: A obscura matéria escura
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.