São Paulo, domingo, 04 de janeiro de 2004

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Ciência em Dia

A gosma de US$ 3,7 bilhões

Marcelo Leite
editor de Ciência

Nanotecnologia -você ainda vai ouvir falar muito dela. Entre outras razões, porque o presidente norte-americano, George W. Bush, decidiu no final do ano passado assinar a Lei de Pesquisa e Desenvolvimento de Nanotecnologia do Século 21, que destina US$ 3,7 bilhões (quase R$ 11 bilhões) a esse campo nos próximos cinco anos.
É muito dinheiro, em termos absolutos e relativos. Para comparação, basta dizer que essa dotação anual é superior ao orçamento inteiro de 2003 do MCT, o Ministério da Ciência e Tecnologia brasileiro, de menos de R$ 2 bilhões. Questão de prioridade, seria o caso de dizer, assim como de disponibilidade de recursos e de visão estratégica.
No Brasil, o MCT resolveu distribuir entre dezenas de laboratórios -para "descentralizar"- uma verba centenas de vezes menor, R$ 8 milhões. Parece nada, mas é bom lembrar que, com pouco mais do que isso, pesquisadores brasileiros conseguiram marcar alguns tentos no campo da genômica, identificando nichos ainda não ocupados. Como é difícil imaginar que a nanotecnologia nacional consiga tirar o pé do lodo em que chafurda o país, é melhor alternar para seu aspecto, por assim dizer, gosmento.
A nanotecnologia, ou pesquisa com dispositivos na escala do milionésimo de milímetro (nanômetro), tem motivado algumas previsões aterrorizantes, como a de que nanorrobôs auto-replicantes viessem a cobrir a Terra com uma gosma cinza. Esse fantasma da "gray goo" foi aventado há alguns anos por Bill Joy, da empresa de computadores Sun.
A imagem tenebrosa virou emblema de possíveis efeitos não-pretendidos da nanotecnologia. Escaldados pelos inúmeros problemas enfrentados pela indústria nuclear e pela biotecnologia, os pesquisadores da nova área estão levando a sério esse espantalho.
A Fundação Nacional de Ciência (NSF) dos EUA, por exemplo, já organizou dois workshops para debater "Efeitos Sociais da Nanociência e da Nanotecnologia", o último deles de 3 a 5 de dezembro.
Uma das conclusões, segundo a revista "The Scientist" (www.the-scientist.com), é que os mecanismos de supervisão e controle da pesquisa já existentes seriam suficientes para dar a devida expressão a preocupações de ordem ética e ambiental, como invasão da privacidade por nanodispositivos e danos à saúde respiratória por nanotubos de carbono.
"Há muita hipérbole e ansidedade", disse à revista George Whitesides, químico da Harvard University, mesmo admitindo que há questões sociais a debater. "A "gosma cinza" e as visões apocalípticas são em grande medida irracionais."
Já Roger Kasperson, especialista em risco do Stockholm Environment Institute e da Clark University, disse que a nanotecnologia tem potencial enorme tanto para riscos quanto para benefícios e que os riscos só poderão ser bem avaliados à medida que a pesquisa avançar. Enquanto isso, a dimensão do risco tal como percebida pela público será tanto maior quanto menor for a confiança na independência e na competência das autoridades responsáveis pela fiscalização da nova seara tecnocientífica.
Para chegar lá e cumprir todas as suas promessas de maravilhas sem alienar a simpatia do público, os nanocientistas terão de gastar muita saliva e estudar as virtudes da transparência, antes de seus fatos serem consumados -exatamente o oposto do que fizeram os colegas nucleares e biotecnólogos.


E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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