|
Texto Anterior | Índice
+ Marcelo Leite
Desastre climático e midiático
Uma coisa é
produzir dados,
outra é torná-los
inteligíveis
Terça-feira foi um dia de notícias
ruins. Na primeira página da
Folha do dia seguinte: China
derruba bolsas no mundo; Avanço do
mar põe 42 milhões em risco; Pernambuco lidera taxa de homicídios.
Fiquemos pelo Brasil, deixando de
lado suas teleconexões com a China. A
exportação de soja tem relação com o
desmatamento na Amazônia, por
exemplo, mas isso já foi comentado
aqui (6 de agosto de 2006). A sensação
da semana foi mesmo a projeção de
impactos do aquecimento global em
território brasileiro.
A previsão catastrófica sobre a elevação do nível do oceano, que afetaria
um quarto da população nacional na
região costeira, saiu de um estudo divulgado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA). Um desastre, sob todos
os aspectos -inclusive de comunicação. Nada a ver com o quarto relatório
do Painel Intergovernamental de Mudança Climática (IPCC) divulgado há
um mês.
Não que o trabalho, "Mudanças Climáticas Globais e seus Efeitos sobre a
Biodiversidade", seja obra de gente
pouco séria. José A. Marengo, do Inpe
(Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), tem reputação internacional.
Uma coisa, porém, é produzir dados e
projeções; empacotá-los e torná-los
inteligíveis pelo público leigo (jornalistas inclusive) são outros 500.
O volume de 201 páginas disponível
na página do MMA na internet (www.mma.gov.br/estruturas/imprensa/_arquivos/livro%20completo.pdf)
tem problemas. A introdução do relatório, por exemplo, diz que ele foi escrito em linguagem acessível, o que
não corresponde à realidade.
Boa parte dos gráficos está em inglês. As legendas em português nem
sempre coincidem com o que se vê.
Embora se dirija a tomadores de decisão, não existe um sumário executivo,
como é praxe nesse gênero de literatura que ninguém lê de ponta a ponta.
Quem se alarmou com a previsão de
que 42 milhões de brasileiros poderiam ter de deixar suas casas -uma
improbabilidade, mesmo que o mar
suba o máximo de 50 cm previsto pelo
IPCC- pode ter sentido necessidade
de verificar a fonte. Neste caso, deu
com os burros n'água.
Confira na pág. 74 de "Mudanças
Climáticas Globais e seus Efeitos sobre a Biodiversidade". Ali se diz que
"cidades litorâneas e 25% da população brasileira, cerca de 42 milhões de
pessoas que vivem na zona costeira,
segundo o Ministério da Educação, serão possíveis vítimas da elevação do
nível do mar, segundo o Relatório do
Greenpeace (Greenpeace 2006)".
MEC? Greenpeace? Não parecem
fontes primárias adequadas para
quantificar cientificamente a parcela
da população que seria afetada por um
evento tão complexo quanto a erosão e
perda de área costeira.
Em tempo: a fonte da ONG ambientalista é "O Mar no Espaço Geográfico
Brasileiro", volume do MEC e da Marinha destinado a professores do ensino médio e fundamental.
Para não dizer que não se falou aqui
da criminalidade, a terça-feira trouxe
ainda o estudo Mapa da Violência, da
OEI (Organização dos Estados Ibero-Americanos). Esqueça Pernambuco e
atente para as cidades campeãs de homicídios: Colniza, com 165,3 mortos
por 100 mil habitantes em 2004, e Juruena, com 137,8 (a média nacional foi
27,0). Ambas ficam em Mato Grosso,
governado pelo rei da soja Blairo Maggi. Figuram regularmente na lista dos
municípios mais desmatados do Estado e da Amazônia. Ali mandam grileiros e madeireiros e desobedece quem
tem juízo.
A questão ambiental, no Brasil, também é caso de polícia.
MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático "Amazônia, Terra com
Futuro" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em
Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
Texto Anterior: Ficção viciada em bibliografia Índice
|