São Paulo, domingo, 04 de julho de 2004

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Ciência em Dia

Falta um Nobel para o Brasil

Marcelo Leite
editor de Ciência

O Brasil é um país ressentido pela falta de muitas coisas sem importância, de neve a um assento no Conselho de Segurança na ONU, mas a ausência de um Prêmio Nobel é mesmo de amargar. Não serve um Nobel qualquer, porém. O país precisa é de um Nobel loquaz como John Sulston, que visitou o Brasil pela primeira vez há coisa de dez dias e havia abocanhado em 2002 a láurea em Medicina ou Fisiologia com Sydney Brenner (outro desbocado) e Robert Horvitz.
Uma ocorrência anedótica ajuda a entender que tipo de pessoa é Sulston. Num jantar privado em restaurante freqüentado pela elite espalhafatosa de São Paulo, alguém lhe sugeriu experimentar o peixe amazônico tambaqui. Com toda a polidez, não se esquivou de fazer a pergunta incômoda: "Mas é [pescado de forma] sustentável?"
Ninguém soube responder se a exploração do Colossoma macropomum respeitava padrões ambientais, e Sulston se decidiu por um cherne, peixe atlântico. Pode ser até que a pesca do Epinephelus niveatus não seja sustentável, como pensam muitos ambientalistas a respeito da indústria pesqueira em geral nos oceanos, mas o fato é que o Nobel pelo menos se preocupou com a situação do peixe brasileiro -coisa que nunca ocorreu a um dos nacionais presentes.
Sir John obviamente não ganhou seu Nobel por falar o que pensa. Ao contrário, a posse do prêmio é que lhe deu mais liberdade para assumir o papel de Grilo Falante da biotecnologia -no bom sentido, o de uma consciência crítica. Isso ele já fazia nos bastidores do Projeto Genoma Humano (PGH), que ajudou a liderar quando dirigiu o Centro Sanger do Reino Unido (um dos cinco grandes institutos de seqüenciamento, ou soletração, do DNA da espécie).
Sulston, britânico, foi a principal força de oposição ao norte-americano Craig Venter, o cientista-empresário que fundou a empresa Celera e ameaçou tirar o genoma do PGH, terminando antes a soletração e obtendo propriedade intelectual sobre dezenas de milhares de genes.
Numa palestra em São Paulo, Sulston deixou claro: não há invenção em soletrar o DNA, portanto o resultado do seqüenciamento não pode ser patenteado. Como patrimônio da espécie, deve permanecer no domínio público -exatamente o oposto da posição de Venter e, na realidade, de muitos biólogos moleculares, inclusive brasileiros. No jantar, segredou que sua mulher, a bibliotecária Daphne, é ainda mais radical: apesar de ter encontrado Venter em muitas reuniões, nunca lhe apertou a mão.
Craig Venter terminou defenestrado da Celera, que não estava conseguindo fazer dinheiro com o genoma, mas hoje trabalha em parceria com o Departamento de Energia (DOE) dos Estados Unidos, que havia sido um dos principais financiadores do PGH (comparecendo com 11% dos estimados US$ 3 bilhões que o projeto custou). A sociedade Venter-DOE envolve o seqüenciamento por atacado de micróbios, para garimpar genes de interesse em aplicações como remediação ambiental (despoluição) e produção de energia.
Sir John disse que "a ética do DOE não era muito boa". E deu a entender que, com exceção de Bob Waterston, outros líderes americanos do PGH não pensam de maneira assim tão diversa de Venter no que respeita ao comercialismo que está no DNA da biologia molecular.
O governo deveria presentear Sulston com cidadania brasileira instantânea.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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