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Até que Darwin os separe
Mutação em um único gene põe ave no rumo de se dividir em duas espécies, intrigando os cientistas
DA REDAÇÃO
Com quantas mutações se faz uma nova
espécie? Um passarinho das Ilhas Salomão parece estar
dando uma resposta inesperada aos cientistas. Uma troca de
uma única letra do DNA em um
único gene do papa-moscas-monarca (Monarcha castaneiventris) aparentemente bastou
para que populações de aves de
duas ilhas vizinhas parassem
de se reconhecer como membros de um mesmo grupo e de
se acasalar umas com as outras.
O estudo, que será publicado
em agosto no periódico "The
American Naturalist", é provavelmente o primeiro caso documentado no qual uma espécie
de vertebrado se divide em
duas após uma alteração genética tão simples.
Tudo o que o tal gene faz é
mudar a cor das penas da barriga do bicho. Segundo um grupo
de biólogos norte-americanos,
isso bastou para pôr os papa-moscas no rumo do isolamento
reprodutivo, marca registrada
da especiação.
Os passarinhos da ilha Makira têm barriga alaranjada, que
dá o nome à espécie ("ventre
castanho", em latim). A menos
de 10 quilômetros de Makira,
na ilhota de Santa Ana, os papa-moscas são totalmente pretos.
Uma análise de DNA das aves
concluiu que uma mutação
pontual num gene chamado
MC1R, que mudou um único
aminoácido (um dos tijolos
moleculares com que se fazem
as proteínas) na sequência de
uma proteína, tornou os pássaros de Santa Ana pretos.
Esse mesmo gene também
está envolvido num outro caso
de especiação incipiente, do
outro lado do mundo: o de uma
espécie de camundongo selvagem (Peromyscus) da Flórida,
sul dos EUA, estudada pelo
grupo da bióloga Hopi Hoekstra, da Universidade Harvard.
Hoekstra observou que os
roedores, de pelagem marrom,
tornaram-se quase brancos depois que colonizaram praias de
areia branca na Flórida.
No caso dos camundongos,
no entanto, dois outros genes
além do MC1R causaram a alteração, e em três etapas, ao longo de milhares de anos.
Com os papa-moscas-monarcas das Ilhas Salomão, a
transição parece ter sido muito
mais acelerada. Experimentos
conduzidos por Jorge Uy, da
Universidade de Siracusa (Nova York) e seu grupo, usando
iPods e pássaros empalhados,
mostraram que os papa-moscas de uma ilha não só não demonstram interesse sexual pelos da outra como reconhecem
seu aspecto e seu canto como
os de uma espécie invasora e
tendem a atacá-los. Uy e seu
grupo afirmam que a cor da
plumagem é responsável pelo
reconhecimento.
Força estranha
"Essas populações estão em
ilhas tão próximas que podem
ser vistas uma pela outra. É
uma distância pequena demais
para implicar em especiação, a
princípio. Alguma força está
mantendo-as separadas", disse
Christopher Filardi, zoólogo do
Museu Americano de História
Natural, coautor do estudo.
Filardi e seus colegas não foram os primeiros a observar os
papa-moscas e concluir pela
existência dessa tal "força". Essas mesmas aves, nas mesmas
ilhas, foram observadas há 80
anos pelo zoólogo alemão
Ernst Mayr (1904-2005).
Mayr considerou os papa-moscas um caso flagrante de
especiação. Suas observações
resultaram no conceito de biológico de espécie, adotado hoje
pelos cientistas. Segundo Mayr,
espécies são conjuntos de indivíduos que cruzam entre si,
mas que estão sexualmente isolados de grupos semelhantes
-geralmente, mas nem sempre, o isolamento começa com
uma barreira geográfica.
A definição de Mayr foi publicada em 1942, no livro "Sistemática e a Origem das Espécies", que ajudou a resolver a
questão que o próprio Charles
Darwin deixara sem resposta:
como surge a biodiversidade.
Híbridos sem vigor
Geralmente se imagina que a
especiação só acontece após
um isolamento que permita o
acúmulo de uma diferença genética significativa. Não é o caso dos passarinhos.
Embora haja cruzamentos
eventuais entre pássaros de
Makira e de Santa Ana, Filardi
diz que os híbridos não se dão
bem. "Eles são uma exceção
que confirma a regra." Como
esses híbridos tendem a sobreviver e se reproduzir menos
que as populações "puras", com
o tempo a tendência é que o fluxo gênico cesse de vez, e as populações das duas ilhas se tornem espécies distintas de fato.
A norte de Makira, uma outra
ilha, Ugi, também é colonizada
por papa-moscas pretos. Porém, para nova surpresa de Uy
e seu grupo, as vias genéticas
que levaram à mudança de cor
em Ugi são diferentes.
"É estranho, porque os ambientes são semelhantes, e
mesmo assim há dois mecanismos diferentes" para produzir
o mesmo resultado, diz Filardi.
A conclusão possível é que há
uma vantagem em ser preto
-mas os cientistas ainda não
sabem por quê. "Isso também
mostra que a evolução atua de
um jeito torto."
(CLAUDIO ANGELO)
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