São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2004

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DUPLA DE PESQUISADORES SUGERE QUE O MATERIAL FOI A MOLA-MESTRA DA REVOLUÇÃO CIENTÍFICA E INDUSTRIAL EUROPÉIA DE 1200 A 1850

O VIDRO EXPLICA

Nasa
Telescópio espacial Hubble, um dos maiores trunfos da óptica no século 20, que capta luz em um espelho de vidro


Ricardo Bonalume Neto
da Reportagem Local

Não há explicações fáceis para certos fatos históricos. Por que foi na Europa, e não no resto do planeta, que houve uma revolução cultural, outra científica, acompanhada por uma militar e seguida de mais outra, industrial? Tudo no período de 1200 a 1850, uma mera fração da história humana. Existem causas próximas, existem causas mais remotas. Há fatores econômicos, há os culturais -e existe o óbvio debate sobre a sua importância relativa. Existem invenções seminais. A roda é uma óbvia delas. A pólvora é outra. Mas dois autores argumentam que, por trás do sucesso dos europeus, está um elemento prosaico da vida moderna, um "herói" cujas glórias ninguém fez muita questão de cantar: o vidro. E há também a tecnologia, e as técnicas que permitem a obtenção de mais conhecimento -que se transforma em poder, metamorfoseado em navios mais capazes, em armas mais letais, em remédios mais eficientes, que facilitaram a expansão européia. A revolução cultural foi o Renascimento, e sua redescoberta do humanismo greco-romano. A revolução militar ainda tem suas datas de início e fim debatidas, mas significou o "modo europeu de guerrear", que conquistou o resto do mundo depois que Vasco da Gama chegou na Índia e Cristóvão Colombo na América no final do século 15. A revolução científica transformou a visão humana do mundo, de mística-autoritária para cética-discutível. E o conhecimento gerado serviu para criar novas ferramentas que deixavam de depender de músculos -animais ou humanos- para usarem energia físico-química, como os motores a vapor e de combustão interna. O vidro deu a base para ocorrerem essas revoluções. E graças a elas, os europeus -e suas colônias ultramarinas povoadas principalmente por europeus, como os Estados Unidos- passaram a ser hegemônicos no mundo. Essa é a tese de Alan Macfarlane, antropólogo da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e de seu colega Gerry Martin, um industrialista e colecionador de instrumentos científicos recentemente morto. Os dois defenderam a tese em um livro publicado em 2002, "The Glass Bathyscaphe" ("O Batiscafo de Vidro", ainda sem tradução para o português), e, mais recentemente, em um artigo na revista científica norte-americana "Science" (www.sciencemag.org), publicado na última sexta-feira. Uma versão preliminar do livro, assim como diversos vídeos ligados ao vidro, podem ser vistos na página do antropólogo na internet (www.alanmacfarlane.com).

Choque de civilizações
A resposta a essa pergunta acadêmica feita no primeiro parágrafo tem importância prática e política nos dias de hoje. Pois essa civilização ocidental, ao mesmo tempo judaico-cristã e secular, está sob ataque de obscurantismos, vindos tanto de fora, como de dentro. Se, por um lado, tornou-se praxe descrever os radicais islâmicos como "fundamentalistas", convém lembrar que o termo surgiu para descrever radicais religiosos cristãos. O presidente dos EUA, George W.Bush, e seu inimigo número um, Osama bin Laden, podem até não ser aliados de ocasião, como o documentário "Farenheit 9-11", do americano Michael Moore, indicaria; mas ambos os homens têm visões de mundo parecidas. "Vidro e o Confronto de Civilizações" é o curioso título de um dos capítulos do livro da dupla, no qual eles comentam como as técnicas européias de produção de vidro não chegaram a ser assimiladas no Oriente. Falam os autores: "Primeiro, há a pergunta do que exatamente nós queremos dizer com "revolução científica" e "Renascimento". A "revolução científica" deve, de fato, ser dividida em duas partes. A primeira ocorreu aproximadamente entre 1250 e 1400 e consistiu em diversos fatores, incluindo a absorção do conhecimento grego por meio dos autores árabes, pelo desenvolvimento das universidades, pela melhoria de ferramentas lógicas, por um interesse crescente pela precisão e pela exatidão, por uma sofisticação crescente da química, matemática, física e em particular da óptica, uma ênfase crescente na autoridade da evidência visual observada do que na autoridade dos antigos como escrito nos textos". Essa "primeira revolução científica" criou as bases para o que veio depois -como o método experimental e o ceticismo. Depois, a partir da década de 1590, com os trabalhos de Francis Bacon e Galileu Galilei, e no século seguinte com Robert Hooke, Robert Boyle e Isaac Newton.

Ferramentas
A segunda leva criou a ciência praticamente como ela é hoje, com ênfase em instrumentos científicos para a obtenção de conhecimento. E sem a existência do vidro, não haveria boa parte dos instrumentos que produziram a revolução.
Macfarlane e Martin selecionaram 20 experimentos científicos famosos, ao acaso, que tiveram grande impacto na sociedade. E descobriram que 15 deles seriam impossíveis caso o vidro não existisse.
Por exemplo, o vidro permitiu a invenção do microscópio e do telescópio, com isso criando as bases de disciplinas fundamentais como a microbiologia e a astronomia. E, sem vidro transparente, como seria possível ler barômetros, termômetros e mesmo cronômetros?
Os autores argumentam que sem barômetros seria mais complicado estudar o comportamento dos gases. E, sem vidro, não existiriam nem motores, nem eletricidade. Nem lâmpadas, obviamente.
Vários povos na Antigüidade desenvolveram o vidro. Para muitos, ele não passava de um substituto barato de pedras preciosas. Os romanos foram além, criando um bom número de aplicações para o vidro, no que foram seguidos pelos venezianos na Idade Média. Nenhuma das outras grandes civilizações desenvolveu o vidro como os europeus fizeram então. "Que a revolução do conhecimento dos últimos 500 anos tenha acontecido na Europa Ocidental e não em outro lugar pode ser atribuído em parte ao colapso da manufatura de vidro em civilizações islâmicas e sua importância diminuída na Índia, no Japão e na China", dizem Macfarlane e Martin.
Não são os cientistas que fazem diretamente seus instrumentos. Eles dependem de uma indústria local, para a qual fazem suas encomendas. Mesmo que o pesquisador saiba do que precisa -um tubo fino e longo e transparente para encher de mercúrio ou água-, ele só vai conseguir o instrumento se existirem os artesãos capazes de fazê-lo. Era o que seria necessário para os experimentos do italiano Evangelista Torricelli sobre vácuo. Mas só na Europa era possível ter isso -nunca, então, na China, Índia, Japão, África ou mesmo nas colônias européias nas Américas.
As conclusões da dupla são ousadas: "O vidro transformou a relação total do homem com o mundo natural, e consigo próprio. Mudou o sentido da realidade, privilegiando a visão sobre a memória, sugeriu conceitos novos de prova e de evidência, conceitos humanos alterados do ser e da identidade. O choque da visão nova desestabilizou a sabedoria convencional, e a visão mais precisa e mais exata forneceram as fundações para o domínio europeu sobre o mundo inteiro durante os séculos seguintes".


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