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Exilados da razão
Filósofa conta a vida de Kurt Gödel, o paranóico que revolucionou a matemática e o conhecimento
IGOR ZOLNERKEVIC
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Incompletude", de Rebecca Goldstein, é a vacina
definitiva contra a praga
de citações incorretas do
trabalho do lógico matemático Kurt Gödel.
Muitos intelectuais mencionam os dois teoremas da incompletude de Gödel como se
fossem provas de que não existe nada de real fora da cultura
humana. Gödel se revira na
tumba quando dizem isso, pois
seus teoremas sugerem justamente o contrário.
Quem folheia "Incompletude" pode se intimidar com as
equações no penúltimo capítulo, onde a prova dos teoremas é
descrita com detalhes. Mas logo nos primeiros parágrafos da
introdução, Goldstein, pesquisadora da Universidade Harvard e autora de cinco romances, mostra que se preocupa
com o leitor leigo.
Goldstein estudou lógica e filosofia da ciência no Instituto
de Estudos Avançados de Princeton (EUA), onde Gödel passou seus últimos dias. Chegou a
cumprimentar "o maior lógico
desde Aristóteles" em uma festinha de boas vindas a novos
alunos no instituto, em 1973.
Foi uma das raras ocasiões em
que o recluso Gödel foi visto ali
numa reunião social. Goldstein
também quase topou com ele
na sessão de congelados do supermercado local, em uma das
raras ocasiões em que o lógico
asceta foi visto buscando algo
para comer.
Para escrever o livro, a filósofa pesquisou uma enorme pilha
de escritos inéditos do gênio
autocontido; ele nunca se expressava publicamente a respeito de algo sobre o qual não
tivesse certeza absoluta.
Amizade metafísica
O livro começa com Gödel
caminhando pelo campus de
Princeton com seu único amigo, Albert Einstein.
A afinidade entre o extrovertido sereno Einstein e o paranóico anti-social Gödel era metafísica. A dupla com personalidades opostas acreditava na sólida realidade "lá fora" dos objetos que exploravam com a
mente: Einstein acreditava em
um mundo físico objetivo existente a despeito de qualquer
observação, enquanto Gödel tinha certeza de que os números
e as demais verdades matemáticas existem independentemente de pensarmos neles, no
mundo das idéias de Platão.
Gödel nasceu em 1906, filho
de austríacos radicados em
Brno, na República Tcheca. A
criança curiosa logo recebeu o
apelido de "Sr. Porquê".
Estudou matemática e lógica
na Viena pós-Primeira Guerra
Mundial, cujo cenário cultural
de cafés e círculos filosóficos
transformou o século 20.
Foi na ex-capital imperial
que Gödel se apaixonou pelo
platonismo, uma corrente filosófica que ia contra tudo aquilo
que pregava o grupo de pensadores mais influentes da época,
o Círculo de Viena.
Gödel freqüentou algumas
reuniões do Círculo de Viena,
que defendia o "positivismo lógico". Para os mentores do Círculo, o conhecimento que não
fosse passível de prova lógica
não faria sentido e, portanto,
não existiria.
Goldstein especula se o retraído Gödel, que ficava quieto
nas reuniões, teria sido motivado a encontrar uma prova absoluta de que os positivistas lógicos estavam errados. Quando
Gödel anunciou seus dois teoremas da incompletude, destruiu não só as aspirações do
Círculo, mas também as do filósofo Ludwig Wittgenstein e do
matemático David Hilbert.
A reação de Wittgenstein aos
teoremas de Gödel foi furiosa.
"Nenhum cálculo pode solucionar um problema filosófico",
disse. Sem parar para apreciar
o resultado de Gödel, Wittgenstein passou seu trator metalinguístico sobre ele.
Hilbert foi o líder do movimento formalista, que queria
eliminar os paradoxos e a intuição da matemática reduzindo a
disciplina a estruturas lógicas,
os "sistemas formais".
A incompletude Gödel significa que uma afirmação matemática pode ser verdadeira,
mas a sua prova, na forma de
uma demonstração para um
teorema, pode não existir.
O leitor que não tiver estômago para refletir sobre "se o
conjunto de todos os conjuntos
que não são elementos de si
mesmo é elemento de si mesmo" deve pular a seção que descreve o processo da prova de
Gödel. O raciocínio da prova é
comparado ao duplo sentido do
grito trágico final da ópera "Os
Palhaços", de Leon Cavallo: "La
commedia è finita!" -a comédia terminou.
Irracionalmente racional
O último capítulo compila os
fatos mais anedóticos que ilustram a personalidade paranóica de Gödel. Entre eles, seu medo de que gases venenosos escapassem da geladeira, e uma
contradição lógica que ele teria
descoberto na Constituição
Americana -a democracia do
país, disse, poderia facilmente
degenerar em uma tirania.
Entre outras bizzarices, ficamos sabendo que Gödel se casou com uma ex-dançarina de
cabaré e adorava Walt Disney,
tendo assistido Branca de Neve
três vezes no cinema.
Depois de descobrir uma
conseqüência bizarra das equações da relatividade de Einstein
-o tempo do universo seria cíclico se todas as galáxias girassem na mesma direção-, Gödel
ficou tão obcecado pela idéia
que resolveu ele mesmo analisar o catálogo de galáxias do astrônomo Edwin Hubble.
Foi encontrado pela última
vez no chão de sua casa em posição fetal, em 14 de janeiro de
1978. Morrera de inanição, com
medo que o envenenassem.
O livro de Goldstein, afinal, é
sobre a incompletude dos sistemas formais e do ser humano.
LIVRO - Incompletude
Rebecca Goldstein; Companhia das Letras; 240 págs.; R$ 42,00
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