São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2008

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Exilados da razão

Filósofa conta a vida de Kurt Gödel, o paranóico que revolucionou a matemática e o conhecimento

IGOR ZOLNERKEVIC
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Incompletude", de Rebecca Goldstein, é a vacina definitiva contra a praga de citações incorretas do trabalho do lógico matemático Kurt Gödel.
Muitos intelectuais mencionam os dois teoremas da incompletude de Gödel como se fossem provas de que não existe nada de real fora da cultura humana. Gödel se revira na tumba quando dizem isso, pois seus teoremas sugerem justamente o contrário.
Quem folheia "Incompletude" pode se intimidar com as equações no penúltimo capítulo, onde a prova dos teoremas é descrita com detalhes. Mas logo nos primeiros parágrafos da introdução, Goldstein, pesquisadora da Universidade Harvard e autora de cinco romances, mostra que se preocupa com o leitor leigo.
Goldstein estudou lógica e filosofia da ciência no Instituto de Estudos Avançados de Princeton (EUA), onde Gödel passou seus últimos dias. Chegou a cumprimentar "o maior lógico desde Aristóteles" em uma festinha de boas vindas a novos alunos no instituto, em 1973. Foi uma das raras ocasiões em que o recluso Gödel foi visto ali numa reunião social. Goldstein também quase topou com ele na sessão de congelados do supermercado local, em uma das raras ocasiões em que o lógico asceta foi visto buscando algo para comer.
Para escrever o livro, a filósofa pesquisou uma enorme pilha de escritos inéditos do gênio autocontido; ele nunca se expressava publicamente a respeito de algo sobre o qual não tivesse certeza absoluta.

Amizade metafísica
O livro começa com Gödel caminhando pelo campus de Princeton com seu único amigo, Albert Einstein.
A afinidade entre o extrovertido sereno Einstein e o paranóico anti-social Gödel era metafísica. A dupla com personalidades opostas acreditava na sólida realidade "lá fora" dos objetos que exploravam com a mente: Einstein acreditava em um mundo físico objetivo existente a despeito de qualquer observação, enquanto Gödel tinha certeza de que os números e as demais verdades matemáticas existem independentemente de pensarmos neles, no mundo das idéias de Platão.
Gödel nasceu em 1906, filho de austríacos radicados em Brno, na República Tcheca. A criança curiosa logo recebeu o apelido de "Sr. Porquê".
Estudou matemática e lógica na Viena pós-Primeira Guerra Mundial, cujo cenário cultural de cafés e círculos filosóficos transformou o século 20.
Foi na ex-capital imperial que Gödel se apaixonou pelo platonismo, uma corrente filosófica que ia contra tudo aquilo que pregava o grupo de pensadores mais influentes da época, o Círculo de Viena.
Gödel freqüentou algumas reuniões do Círculo de Viena, que defendia o "positivismo lógico". Para os mentores do Círculo, o conhecimento que não fosse passível de prova lógica não faria sentido e, portanto, não existiria.
Goldstein especula se o retraído Gödel, que ficava quieto nas reuniões, teria sido motivado a encontrar uma prova absoluta de que os positivistas lógicos estavam errados. Quando Gödel anunciou seus dois teoremas da incompletude, destruiu não só as aspirações do Círculo, mas também as do filósofo Ludwig Wittgenstein e do matemático David Hilbert.
A reação de Wittgenstein aos teoremas de Gödel foi furiosa. "Nenhum cálculo pode solucionar um problema filosófico", disse. Sem parar para apreciar o resultado de Gödel, Wittgenstein passou seu trator metalinguístico sobre ele.
Hilbert foi o líder do movimento formalista, que queria eliminar os paradoxos e a intuição da matemática reduzindo a disciplina a estruturas lógicas, os "sistemas formais".
A incompletude Gödel significa que uma afirmação matemática pode ser verdadeira, mas a sua prova, na forma de uma demonstração para um teorema, pode não existir.
O leitor que não tiver estômago para refletir sobre "se o conjunto de todos os conjuntos que não são elementos de si mesmo é elemento de si mesmo" deve pular a seção que descreve o processo da prova de Gödel. O raciocínio da prova é comparado ao duplo sentido do grito trágico final da ópera "Os Palhaços", de Leon Cavallo: "La commedia è finita!" -a comédia terminou.

Irracionalmente racional
O último capítulo compila os fatos mais anedóticos que ilustram a personalidade paranóica de Gödel. Entre eles, seu medo de que gases venenosos escapassem da geladeira, e uma contradição lógica que ele teria descoberto na Constituição Americana -a democracia do país, disse, poderia facilmente degenerar em uma tirania.
Entre outras bizzarices, ficamos sabendo que Gödel se casou com uma ex-dançarina de cabaré e adorava Walt Disney, tendo assistido Branca de Neve três vezes no cinema.
Depois de descobrir uma conseqüência bizarra das equações da relatividade de Einstein -o tempo do universo seria cíclico se todas as galáxias girassem na mesma direção-, Gödel ficou tão obcecado pela idéia que resolveu ele mesmo analisar o catálogo de galáxias do astrônomo Edwin Hubble.
Foi encontrado pela última vez no chão de sua casa em posição fetal, em 14 de janeiro de 1978. Morrera de inanição, com medo que o envenenassem.
O livro de Goldstein, afinal, é sobre a incompletude dos sistemas formais e do ser humano.

LIVRO - Incompletude
Rebecca Goldstein; Companhia das Letras; 240 págs.; R$ 42,00



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