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São Paulo, domingo, 06 de abril de 2003

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Ciência em Dia

A comédia dos transgênicos

Marcelo Leite
editor de Ciência

O governo Luiz Inácio Lula da Silva deu enfim um desfecho, na base da canetada, para a novela dos alimentos transgênicos. Seguindo o padrão de continuísmo que tem caracterizado sua administração, e para surpresa só dos desavisados, decidiu autorizar a comercialização da soja geneticamente modificada -e clandestinamente plantada- para se tornar resistente a herbicida.
Traduzindo em palavras comuns: o governo federal baixou uma medida provisória legalizando a ilegalidade largamente praticada por agricultores do Rio Grande do Sul. Quando optaram por contrabandear da Argentina a soja apelidada de Maradona, ou simplesmente comprar sementes que até as pedras das coxilhas sabiam ser contrabandeadas, os sojicultores gaúchos sabiam que o faziam sob a proibição de um juiz federal.
Pois foi esse desafio aberto à ordem jurídica que o presidente da República decidiu sancionar. Ele foi praticado sob o silêncio das empresas de biotecnologia e a vista grossa do órgão encarregado de controlar os OGMs, ou organismos geneticamente modificados, a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança). A política do fato consumado, como se comprova mais uma vez no país do faz-de-conta, dá resultados. Não se tratasse de uma leguminosa, seria o caso de declarar, em linguagem popular: está aberta a festa do caqui.
Nem é preciso ser contra (ou a favor) dos OGMs para espantar-se com a decisão. Do ponto de vista da biossegurança propriamente dita, mesmo alguns adversários dos transgênicos, por princípio ou ideologia, concederão que a soja Roundup Ready da Monsanto não representa grande ameaça, seja para a saúde humana, seja para o ambiente.
Plantada há vários anos nos Estados Unidos e na Argentina, em larga escala, não há caso documentado de reação alérgica ou outro dano à saúde provocado pela RR. A planta recebeu um gene de bactéria para se tornar capaz de metabolizar (degradar) o herbicida glifosato, que a própria Monsanto vende como Roundup. Isso faz com que não morra com as ervas daninhas, quando a plantação é tratada com esse defensivo. Para as autoridades reguladoras desses países, assim como para a CTNBio, tal modificação genética não afeta a composição da soja como alimento.
Do ponto de vista ambiental, há razões para acreditar que a soja RR possa ser inócua, pelo menos no país. Primeiro, porque não há nos ecossistemas brasileiros parente silvestre próximo da Glycine max (nome científico da soja), para o qual os genes modificados pudessem passar, dada a notória promiscuidade genética das plantas. Segundo, porque a soja não espalha pólen que fertilize plantas aparentadas, como o milho.
Com base só nessas ponderações "técnicas", mas sem discussão pública, a CTNBio autorizou em 1998 o plantio comercial da RR. Deu no que deu. Organizações não-governamentais questionaram na Justiça a dispensa de estudos de impacto ambiental, que seria inconstitucional, e a questão se arrastava desde então pelos tribunais -até Lula pôr-lhe um ponto final, pelo menos no que se refere à safra atual, agora liberada.
Não é a primeira vez que um governo federal tenta desatar o nó dos transgênicos sob o fio cortante de medidas provisórias. FHC fez exatamente a mesma coisa -sem sucesso, é bom lembrar.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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