São Paulo, segunda-feira, 06 de maio de 2002

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POLÊMICA

Francês que afirmou ter comprovado o princípio da homeopatia critica o domínio da genética e os "talibãs" da ciência

"Sou um médico clássico", diz Benveniste

Alexandre Campbell/Folha Imagem
O imunologista francês Jacques Benveniste, em hotel do Rio


CLAUDIO ANGELO
EDITOR-ASSISTENTE DE CIÊNCIA

O imunologista francês Jacques Benveniste está certo de que vai rir por último. Mais de uma década depois de protagonizar uma das maiores polêmicas científicas dos últimos anos, ao propor, em 1988, que a água tinha "memória" -o que explicaria um dos princípios da homeopatia-, ele viu um grupo de pesquisadores europeus comprovar atividade biológica em uma solução diluída a ponto de não conter virtualmente nenhuma molécula ativa.
Benveniste, que chefiava um respeitado grupo de pesquisas no Instituto Nacional de Saúde e Pesquisas Médicas da França, perdeu prestígio acadêmico e todo o financiamento público depois de publicar, na revista científica "Nature" um estudo no qual afirmava que soluções compostas por água na qual haviam estado moléculas ativas ainda fazia efeito sobre células imunológicas humanas.
O estudo, que saiu em 30 de junho de 88, era tão insólito que o editor-chefe da revista à época, John Maddox, resolveu publicá-lo sob a condição de que o laboratório de Benveniste seria inspecionado depois por uma comissão designada pela "Nature". Como não conseguiu replicar o experimento, Benveniste virou sinônimo de fraude no meio acadêmico.
Hoje, o francês faz suas pesquisas numa companhia que ele mesmo fundou, a DigiBio, numa área que parece ainda mais esotérica: a biologia digital. Ele afirma ter comprovado que as moléculas emitem sinais eletromagnéticos que podem ser de algum modo armazenados pela água e transmitidos pela internet.
Aos 67 anos, o francês veio ao Brasil para participar do Simpósio Internacional de Pesquisa em Homeopatia, no Rio de Janeiro.
Em entrevista concedida à Folha numa sala de aula da Universidade Federal de São Paulo, o pesquisador contou a sua versão do "caso Benveniste", criticou a hegemonia da genética nas pesquisas, a biologia moderna e os homeopatas. Diz que se define como um médico "clássico" e não hesita em receitar paracetamol quando seus filhos têm febre.

Folha - O que falta para a homeopatia ser reconhecida pela chamada ciência ortodoxa?
Jacques Benveniste -
A homeopatia tem falhado em desenvolver uma política de pesquisa, que seria direcionada ao que nós chamamos de medicina baseada em evidências. Alguns trabalhos foram feitos mostrando a eficácia da homeopatia, mas não bastantes para convencer o mundo sobre isso. O segundo problema principal dos homeopatas é que eles não conseguiram explicar como uma droga que não contém moléculas pode agir. Mesmo quando muitos laboratórios têm muito bons resultados, não publicam em revistas científicas.

Folha - Isso seria um reflexo do caso Benveniste?
Benveniste -
Sim, isso tem a ver com o caso Benveniste, mas às avessas. Eles levaram o caso da "Nature" ao contrário, porque, em vez de dizer: "OK, nós perdemos uma batalha, mas agora sabemos o que fazer", que é mandar um, dois, quatro, dez, 20 artigos de boa ciência básica para "Nature", "Science", "PNAS", grandes revistas, essas pessoas dizem: "Veja o que aconteceu com Benveniste! Então vamos publicar nossos dados na Revista Brasileira de Homeopatia". Que não é nada! Além do mais, grandes companhias homeopáticas, não fazem praticamente nenhuma pesquisa.

Folha - O sr. não acha que acontece exatamente o contrário, quer dizer, grandes revistas, como a "Science" e a "Nature" se recusam a publicar artigos de homeopatas dada a experiência prévia?
Benveniste -
É exatamente isso. Não só de homeopatas. E eu mesmo, publiquei na vida 30 artigos no "Journal of Immunology" [da Associação Americana de Imunologia". Mas um que eu mandei sobre biologia digital foi recusado, por razões puramente ideológicas. Hoje, se você quer mandar um artigo que não seja biologia molecular ou genética molecular, eles não estão interessados. No entanto, a aplicação da genética ao tratamento de doenças é uma falha completa.

Folha - É uma área que está começando...
Benveniste -
Após 15 anos? Após 500 testes clínicos? E agora eles estão falando que não terão nenhum resultado em menos de 30, 40 anos. Se você pegar os quatro principais inimigos na humanidade -doenças cardiovasculares, câncer, doenças parasitárias e degenerativas-, não houve nenhum progresso na biologia fundamental nos últimos 30 anos.

Folha - Poderíamos dizer que é o jeito como as coisas andam.
Benveniste -
Em 30 anos? Você pode cravar, sem ser desmentido, que os maiores progressos na cardiologia nos últimos 30, 40 anos foram o cateter, o óleo de oliva e a aspirina. É o princípio da biologia que está errado. A biologia está na era ptolomaica ainda.

Folha - O sr. não acha que um problema da homeopatia é há muitos "bruxos" na área? Gente que acredita em "energias", por exemplo?
Benveniste -
Sim, eu concordo. Mas, se você pegar os livros clássicos de medicamentos, daqueles que todo médico tem em suas mesas, eles têm até 15 mil drogas. E é geralmente admitido que nem 10% delas funcionam realmente. E ninguém vai dizer que a medicina clássica é bruxaria.

Folha - Como aconteceu o caso com a "Nature" em 88?
Benveniste -
John Maddox me disse em 1987 que não podia publicar o paper antes que ele fosse pré-replicado antes em outros laboratórios, o que é contra a lei. Mas eu o fiz. O trabalho foi replicado em três laboratórios, no Canadá, na Itália e em Israel. Todo mundo se esqueceu completamente disso. Além disso, em 1991, a "Nature" publicou um artigo que podemos chamar, para usar um eufemismo, de um erro voluntário. Eles usaram minha técnica sem me consultar e fizeram 14 modificações nela. Os autores viram o efeito, mas disseram que podia ser um erro estatístico. Foi tudo armado pela "Nature".

Por quê?
Benveniste -
É uma guerra religiosa. É como se eu estivesse tentando publicar no "Observatório Romano" um artigo provando que Jesus nunca existiu. E uma guerra pessoal: a primeira mulher de Maddox morreu de câncer. E foi tratada por um homeopata.

O sr. processou a "Nature"?
Benveniste -
Não. Eu não tenho base para fazer isso.

Mas eles o fizeram perder todo o seu financiamento.
Benveniste -
Não basta. Se eu sou um mau cientista e a "Nature" mostra que eu sou um mau cientista, é normal que eu perca a minha posição. E eles podem provar no tribunal que ninguém jamais processou uma revista científica. É uma pergunta que pode ser feita: por que a ciência está fora das regras jurídicas gerais?

Havia falhas no seu experimento original que não sustentassem a publicação, apesar de o experimento estar certo no conceito?
Benveniste -
Ninguém mostrou um erro metodológico no meu artigo. Dois anos depois da "Nature", eu mandei dois artigos sobre imunologia para duas revistas importantes. Eles foram publicados! Com os mesmos testes errados, sujos e horríveis de que falavam.

Folha - Madeleine Ennis, da Universidade Queens, em Belfast, observou em 2001 efeito biológico de diluições muito altas, mas disse que, "diferentemente de Benveniste, eu não tenho teorias fantásticas para explicar isso".
Benveniste -
Eles usaram exatamente o mesmo método que eu usei, mas dizem que "isso não confirma de jeito nenhum os achados de Benveniste". O que é, para ser gentil, uma criancice. Se ela não tem teoria nenhuma, é porque ela está exatamente no mesmo ponto em que eu estava em 1985. Em vez de trabalhar comigo, Ennis fez testes por toda a Europa com a minha técnica e acabou publicando um sumário duas páginas num congresso em Barcelona. Sem impacto nenhum.

Folha - O sr. tentou publicar seus resultados com biologia digital em algum dos grandes periódicos?
Benveniste -
Não. É como se eu voltasse ao "Observatório Romano" e dissesse: "Olha, agora eu tenho mais testes que provam que Jesus não existiu". O que nós estamos tentando fazer agora é reproduzir os resultados em grandes laboratórios. O que não é simples, trabalhando com campos eletromagnéticos, e não podemos controlar tudo. Estamos em 1905, com aviões algumas vezes decolando, outras não.

Folha - Há alguma doença para a qual o sr. não recomendaria tratamento homeopático?
Benveniste -
Eu diria que, se você tiver infecção no miocárdio, ou septicemia, melhor é recorrer a antibióticos ou tratamento intensivo. Quando eu chefiava a clínica da Universidade de Paris, meu trabalho era tratamento intensivo de pacientes de câncer. Então, eu sou um médico totalmente clássico. Agora, minha filha mais nova teve febre em Cuba, e um amigo homeopata disse para dar um certo grânulo [homeopático" para ela. Eu respondi que só se ele me mostrasse um artigo comprovando a eficiência do grânulo contra febre. Dei paracetamol para ela.

Folha - O sr. é o único cientista a ganhar duas vezes o prêmio IgNobel [o Nobel da pesquisa inútil". Isso o incomoda?
Benveniste -
Incomoda muito, porque há um bocado de vigilantes que atira em tudo o que se move. Sob o pretexto de fazer piada, esses homens exercem o integrismo. Eles são os talibãs da ciência.


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