São Paulo, domingo, 06 de agosto de 2006

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Crítica e arrependimento, fé e ciência

Simpósio na Amazônia coloca as duas áreas em debate, mas ainda falta uma linguagem comum, que vá além do fascínio místico de Gaia

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

A sessão mais concorrida do simpósio "Amazonas Fonte de Vida" foi marcada de improviso para as 22h do último dia de debates, 18 de julho, que havia começado com uma caminhada pelo Parque Nacional do Jaú (22.720 km2, o segundo maior do Brasil), na bacia do rio Negro. Até então, religiosos e pesquisadores haviam feito revezamento como palestrantes e espectadores do evento a bordo do navio Iberostar Grand Amazon, organizado pela Igreja Ortodoxa Grega. O auditório estava lotado para presenciar o diálogo direto entre religião e ciência, representados pelos autores das conferências mais aplaudidas até então: Ioannis Zizioulas, teólogo ortodoxo grego, e Antonio Donato Nobre, ecólogo do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa).


Em lugar de crença e fé, ciência precisa do lastro de valores e de envolvimento com o objeto, sem contrição


O tema da conversa era "Olhando para Trás para Enxergar à Frente", vago e paradoxal o bastante para acomodar ambos os pólos. O primeiro ato do diálogo coube a Nobre, que falou por intermédio de Betsy Chasse, Mark Vicente e William Arntz, diretores do documentário quântico-místico "Quem Somos Nós?" ("What the Bleep Do We Know?"). A pedido do pesquisador, foram projetados no salão os primeiros 15 minutos do DVD, o bastante para introduzir a noção de que "a matéria não é sólida" -e que os diretores sugerem equivaler a "não ter realidade". Para Nobre, foi também uma maneira de expressar sua convicção de que a ciência ocidental alcançara o limite de sua prática reducionista, tornando-se incapaz de compor um conhecimento totalizador, "holista", do mundo.
Foi a terceira vez em que Nobre ganhou os favores da platéia, ou pelo menos da parte que subscreve religiosamente a concepção de que a Terra é um organismo vivo, Gaia (de pajés a Vandana Shiva, a física indiana que se tornou celebridade na luta contra a biotecnologia, não faltou sociodiversidade e multiculturalismo no simpósio). Sem receio de recorrer ao vocabulário prenhe de intencionalidade dos amigos de Gaia, Nobre discorreu sobre como a mata emite compostos orgânicos voláteis que "enganam a atmosfera para que produza chuva". Falou até de como uma borboleta azul, dotada do que chamou de cristais fotônicos orgânicos nas asas, desenvolveu a "incrível capacidade de manipular a reflexão da luz".
Em uma segunda oportunidade de maravilhar o público, horas antes do diálogo com Zizioulas, Nobre apresentou o ainda debatido modelo que relaciona a larga extensão de floresta amazônica com fenômenos climáticos remotos, como as chuvas no Sudeste brasileiro e no norte da Argentina, em latitudes que noutras partes -como a Austrália- exibem desertos. Anomalias como furacões mais intensos no Caribe e como a seca de 2005 na Amazônia poderiam estar relacionadas ao avanço progressivo do desmatamento. Era tudo que queria ouvir uma platéia inclinada a alarmar-se com perturbações humanas da ordem divina inscrita na natureza entendida como epifania, ou, melhor dizendo, como Criação.
Mais que um terreno comum entre ciência e religião, essa é a praia da teologia, e nela passeou à vontade Zizioulas (ou João de Pérgamo, segundo seu título na hierarquia ortodoxa). Depois de observar educadamente que o vídeo exibido não era muito relevante para o tema do simpósio, o teólogo retomou a surpreendente exposição que havia feito no primeiro dia. Pérgamo sustentara que o cerne da crise ambiental contemporânea está na definição de homem consagrada pela tradição platônico-cristã, que privilegia a alma e o espírito em detrimento do corpo e de sua conexão com a natureza. Um descolamento que só veio a agravar-se com as tecnologias do virtual: "O grande e terrível risco à espreita nessas realizações é que o corpo é gradualmente cancelado como um instrumento de inteligência, dado que pensamos, comunicamos, comerciamos e até nos apaixonamos sem o corpo, esse instrumento único que nos conecta com nosso ambiente natural -e com outras pessoas".
Pérgamo foi além, ou melhor, recuou ainda mais na sua tentativa de enxergar um futuro de reconciliação: atacou René Descartes e Francis Bacon como os responsáveis pela assimilação e agravamento dessa cisão na nascente ciência moderna, por defenderem a possessão e até a escravização da natureza pelo intelecto. É por isso que, na opinião do teólogo, tanto a religião quanto a ciência devem "se arrepender" de seu passado, sobretudo pelo "zelo missionário" com que trataram os povos indígenas. Eles, na sua concepção, mantiveram a capacidade de conviver harmoniosamente com a natureza, assimilando-a em seus mitos, e é preciso aprender com eles. Mas ressalvou: "Não precisamos nos converter ao paganismo para salvar o ambiente. O paganismo respeita a natureza, mas também cultiva um temor diante dela. Respeito e temor precisam ser distinguidos um do outro".
Foi nesse ponto que a comunhão em torno de Gaia começou a ruir. Nobre, com certo cuidado, protestou contra o uso do termo "paganismo", por seu sentido pejorativo. Pérgamo negou que sua noção fosse negativa, mas ao explicá-la empregou figuras de superioridade e inferioridade: disse que se tratava de uma visão da existência determinada pela natureza, que não a questiona, quando caberia ao homem, mesmo reconhecendo-se parte dessa natureza, elevar-se acima dela por meio do... pensamento. "A ciência deve nos conduzir ao reconhecimento de que estamos questionando a natureza, mas como parte do mundo natural -o que os animais não podem fazer."
Além da objeção de Nobre, surgiu outra de uma antropóloga: "Ciência e religião não falam a mesma linguagem sobre células-tronco", exemplificou. Mais contemporizador, outro membro da platéia propôs uma metáfora por assim dizer ecumênica para o conhecimento: a ciência seria a carga, e a crença, o lastro. Sem este, viagem alguma teria estabilidade.
É uma boa imagem, mas o diálogo possível entre religião e ciência exige rever esse vocabulário, como ficou claro. Em lugar de crença ou fé, a ciência precisa do lastro de valores, de envolvimento com o objeto (visando mais sua integridade do que seu controle), e não de arrependimento, no sentido cristão. Crítica, sim, aí incluída a autocrítica, mas sem a mística de Gaia ou da Verdade maiúscula da teologia. Olhar para a frente, ainda que de várias perspectivas, porque do passado nada de novo pode surgir.


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