São Paulo, domingo, 06 de agosto de 2006 |
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+ ciência Crítica e arrependimento, fé e ciência Simpósio na Amazônia
coloca as duas áreas em debate,
mas ainda falta uma linguagem
comum, que vá além
do fascínio místico de Gaia
O tema da conversa era "Olhando para Trás para Enxergar à Frente", vago e paradoxal o bastante para acomodar ambos os pólos. O primeiro ato do diálogo coube a Nobre, que falou por intermédio de Betsy Chasse, Mark Vicente e William Arntz, diretores do documentário quântico-místico "Quem Somos Nós?" ("What the Bleep Do We Know?"). A pedido do pesquisador, foram projetados no salão os primeiros 15 minutos do DVD, o bastante para introduzir a noção de que "a matéria não é sólida" -e que os diretores sugerem equivaler a "não ter realidade". Para Nobre, foi também uma maneira de expressar sua convicção de que a ciência ocidental alcançara o limite de sua prática reducionista, tornando-se incapaz de compor um conhecimento totalizador, "holista", do mundo. Foi a terceira vez em que Nobre ganhou os favores da platéia, ou pelo menos da parte que subscreve religiosamente a concepção de que a Terra é um organismo vivo, Gaia (de pajés a Vandana Shiva, a física indiana que se tornou celebridade na luta contra a biotecnologia, não faltou sociodiversidade e multiculturalismo no simpósio). Sem receio de recorrer ao vocabulário prenhe de intencionalidade dos amigos de Gaia, Nobre discorreu sobre como a mata emite compostos orgânicos voláteis que "enganam a atmosfera para que produza chuva". Falou até de como uma borboleta azul, dotada do que chamou de cristais fotônicos orgânicos nas asas, desenvolveu a "incrível capacidade de manipular a reflexão da luz". Em uma segunda oportunidade de maravilhar o público, horas antes do diálogo com Zizioulas, Nobre apresentou o ainda debatido modelo que relaciona a larga extensão de floresta amazônica com fenômenos climáticos remotos, como as chuvas no Sudeste brasileiro e no norte da Argentina, em latitudes que noutras partes -como a Austrália- exibem desertos. Anomalias como furacões mais intensos no Caribe e como a seca de 2005 na Amazônia poderiam estar relacionadas ao avanço progressivo do desmatamento. Era tudo que queria ouvir uma platéia inclinada a alarmar-se com perturbações humanas da ordem divina inscrita na natureza entendida como epifania, ou, melhor dizendo, como Criação. Mais que um terreno comum entre ciência e religião, essa é a praia da teologia, e nela passeou à vontade Zizioulas (ou João de Pérgamo, segundo seu título na hierarquia ortodoxa). Depois de observar educadamente que o vídeo exibido não era muito relevante para o tema do simpósio, o teólogo retomou a surpreendente exposição que havia feito no primeiro dia. Pérgamo sustentara que o cerne da crise ambiental contemporânea está na definição de homem consagrada pela tradição platônico-cristã, que privilegia a alma e o espírito em detrimento do corpo e de sua conexão com a natureza. Um descolamento que só veio a agravar-se com as tecnologias do virtual: "O grande e terrível risco à espreita nessas realizações é que o corpo é gradualmente cancelado como um instrumento de inteligência, dado que pensamos, comunicamos, comerciamos e até nos apaixonamos sem o corpo, esse instrumento único que nos conecta com nosso ambiente natural -e com outras pessoas". Pérgamo foi além, ou melhor, recuou ainda mais na sua tentativa de enxergar um futuro de reconciliação: atacou René Descartes e Francis Bacon como os responsáveis pela assimilação e agravamento dessa cisão na nascente ciência moderna, por defenderem a possessão e até a escravização da natureza pelo intelecto. É por isso que, na opinião do teólogo, tanto a religião quanto a ciência devem "se arrepender" de seu passado, sobretudo pelo "zelo missionário" com que trataram os povos indígenas. Eles, na sua concepção, mantiveram a capacidade de conviver harmoniosamente com a natureza, assimilando-a em seus mitos, e é preciso aprender com eles. Mas ressalvou: "Não precisamos nos converter ao paganismo para salvar o ambiente. O paganismo respeita a natureza, mas também cultiva um temor diante dela. Respeito e temor precisam ser distinguidos um do outro". Foi nesse ponto que a comunhão em torno de Gaia começou a ruir. Nobre, com certo cuidado, protestou contra o uso do termo "paganismo", por seu sentido pejorativo. Pérgamo negou que sua noção fosse negativa, mas ao explicá-la empregou figuras de superioridade e inferioridade: disse que se tratava de uma visão da existência determinada pela natureza, que não a questiona, quando caberia ao homem, mesmo reconhecendo-se parte dessa natureza, elevar-se acima dela por meio do... pensamento. "A ciência deve nos conduzir ao reconhecimento de que estamos questionando a natureza, mas como parte do mundo natural -o que os animais não podem fazer." Além da objeção de Nobre, surgiu outra de uma antropóloga: "Ciência e religião não falam a mesma linguagem sobre células-tronco", exemplificou. Mais contemporizador, outro membro da platéia propôs uma metáfora por assim dizer ecumênica para o conhecimento: a ciência seria a carga, e a crença, o lastro. Sem este, viagem alguma teria estabilidade. É uma boa imagem, mas o diálogo possível entre religião e ciência exige rever esse vocabulário, como ficou claro. Em lugar de crença ou fé, a ciência precisa do lastro de valores, de envolvimento com o objeto (visando mais sua integridade do que seu controle), e não de arrependimento, no sentido cristão. Crítica, sim, aí incluída a autocrítica, mas sem a mística de Gaia ou da Verdade maiúscula da teologia. Olhar para a frente, ainda que de várias perspectivas, porque do passado nada de novo pode surgir. Próximo Texto: + Marcelo Gleiser: Visões harmônicas Índice |
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